15 de dezembro de 2011

Apocalipse segundo Lestachev

Pela areia da praia vem se aproximando, sem deixar pegada, Lestachev, anjo da província de Petersburgo, criado no rio Neva, do segundo Coro esquerdista, mensageiro das más palavras desde novembro de 1917. Voz empostada, trombeta numa mão, as sagradas escrituras noutra, ele começa a profetizar.
"Fantoche indômito. Espantalho da Wall Street. Acha que sabe dos mistérios entre o céu e a terra. Desça sobre vós a ira de meu deus Dario. Será imolado pela soberba. Receberá cada vez mais e mais sem saber onde colocar. Farei de vós uma cobaia do neoliberalismo, uma figura que demonstre o poder do capitalismo rico. Viverá de debêntures em Nova York, olhando gráficos em telas de computador durante oito horas diárias, tomando cinco xícaras de café e tendo gastrite aos 25 anos. Terá contas em paraísos fiscais: Suíça, Ilhas Cayman, Bahamas. Fará brotar dinheiro com suor alheio.
Seu lema será a liberdade acima de tudo, quem a possibilitará é seu dinheiro. Será individualista, preconceituoso e atrairá pessoas com sua riqueza. Terá 100 mil vezes mais do que precisa e achará que necessita de mais. Fraldará a declaração de imposto de renda. Terá sete casas, em cada casa sete carros, em cada carro sete prostitutas, em cada prostituta sete mil dólares, em cada dólar sete pecados capitais. Magoará a muitos, pois a prioridade são dígitos e não sentimentos.
Saberá com antecedência sobre fusões de multinacionais e ganhará milhões em minutos numa segunda-feira na abertura do pregão da Dow Jones.
Não verá teu filho dizer as primeiras palavras, dar os primeiros passos, o primeiro dia na escola, o primeiro gol no campeonato, entretando ele estudará em Harvard, ou Yale, e dirigirá um Porsche aos 18 anos. Terá um relacionamento superficial com sua esposa. O que ela mais fará é viajar com as amigas para Paris, Milão, Tóquio e Barcelona. Ela terá mais de um sapato para cada dia do ano, fará bazares com roupas usadas e usará o dinheiro arrecadado não para doar, mas para comprar roupinhas para a cadela, Shiva.
Terá tudo, mas faltará algo que não sabe o que é, só imagina que seja dentro, onde moedas não são aceitas como em máquinas de refrigerante. Um vazio, um buraco, um oco. A partir dos 40 anos viverá angustiado, tomará mais uísque do que pode e terá cirrose hepática. Não conseguirá mais tomar conta sozinho do seu tesouro, outras pessoas começarão a ajudar, mas seu dinheiro começará a aparecer em atividades ilegais. Tramas políticas, dossiês, assassinatos e corrupção. Terá laranjas. Lavará seu dinheiro dos paraísos fiscais e fugirá antes de ser preso para uma fazenda no meio da mata, no Peru. Após alguns anos, sua mulher fugirá com um jovem latino e seu filho se envolverá com o narcotráfico.
Suas fontes peruanas denunciarão que a polícia internacional está cada vez mais próxima de seu esconderijo. Num ato desesperado aos 50 anos, que é agora, redige seu testamento, hoje não muito mais que a única propriedade em meio a mata e um carro. Então se vê sozinho. Sem passado e futuro. Para onde foi toda aquela gente, além da esposa e o filho. Sua vida não faz mais sentido entre nós, a não ser para beber, sozinho. Não mais será lembrado pela riqueza, mas pelo suicídio. De que adiantaria passar o resto da sua vida na cadeia?
É outono, onde tudo morre para um dia nascer de novo. A noite é nublada - carregada, ventos uivam ao entrar pela fresta na janela - típica para um tiro na boca. A vitrola, sua última paixão, toca Comfortably Numb, do Pink Floyd, que o leva até a segunda gaveta do lado direito do guarda roupa, onde ficam as meias. Pega uma caixa e a cada passo de volta à sala, toma um gole do uísque de ontem. Senta na poltrona, ao lado da vitrola, desliga o abajur que usava para ler a noite e redige uma carta de suicídio, não em papel, apenas em pensamento. Abre a caixa que trouxe e toma o calibre 38. Tira todas as balas do tambor e numa tentativa de se dar uma chance e desistir do ato, coloca só uma delas em sua sorte. Gira o tambor e o fecha. Engatilha. Pela segunda vez na vida pensa em um deus, a primeira foi quando teve de fugir para o lugar que está hoje, não pede nada, só pensa. Após a última dose de bebida, enxuga os olhos. Morrerá corroído por um sentimento de culpa e arrependimento, achando que as coisas poderiam ter caminhado de uma forma diferente. Coloca o cano da arma na boca e puxa o gatilho. A vida hollywoodiana que estava acostumado aqui não tem efeito. Não foi salvo no último instante. Caprichosamente, a única bala no revólver o mata no primeiro tiro.
Uma semana depois, um dos seus capangas, o encontra com o pescoço caído para o lado esquerdo, o sangue já seco na poltrona e o corpo putrefato, rodeado por mosquitos. A polícia toma a casa e a leva a leilão, o dinheiro arrecadado seria utilizado para um fundo de ação social peruano, porém quase sua totalidade é desviado para paraísos fiscais. Um dos banqueiros envolvidos nesse desvio é quem comprou a casa. Sua sétima casa, na garagem o sétimo carro...
Mais um que chega ao templo, mais um a ser imolado no altar de Dario, para demonstrar o poder que só ele tem, o de cunhar moedas e se quiser, homens."

13 de dezembro de 2011

Epílogo

Nasce sem saber da vida e morre sem saber da morte. Nasce sem saber da emoção e morre sem saber da razão. Nasce sem saber de onde veio e morre sem saber o porquê vai. Nasce sem saber de céu e morre sem saber de inferno. Nasce sem saber de iluminação e morre sem saber de espírito. Nasce sem saber de consciência e morre sem saber de alma. Nasce sem saber do dinheiro e morre sem saber da igualdade. Nasce sem saber de nada e morre sem saber de tudo. Nasce sem saber do ontem e morre sem saber do amanhã. Nasce sem saber quem é e morre sem saber o que é.
Nasce sem saber que a vida é um eterno nascer e morrer de pequenas coisas. Elas morrem fora e nascem dentro.
Morre sem saber que as grandes coisas nascem uma única vez, morrem uma única vez.
Para coisas grandes não há ressureição, reencarnação ou criogenia. Elas morrem dentro, não fora.
Qual o tamanho da sua ficha criminal? Qual o tamanho do seu cemitério? Qual o tamanho da sua culpa?

10 de dezembro de 2011

Eu sublimo, tu sublimas

Por dez anos a sublimei em natureza.
Estava sempre ao meu redor como vida.
Adormeci em sua terra, água, ar e fogo.
Até que choveu em minha varanda.
Molhou-me.
Lavou-me.
Ressuscitou-me.
Era o primeiro raio de sol da manhã e o último da tarde.
Era o fulgor da lua cheia e a maré de água viva.
Era o gracioso do orvalho e o rio por entre pedras.
Era o galho seco do outono e a flor da primavera.
Eis que então sublimou-me em suas gotas para vivê-la.
Não mais ao redor, mas sim envolto em seu lugar.
Do seu sol, sou halo.
Da sua lua, sou fase.
Do seu rio, sou foz.
Do seu outono, sou queda.
Da sua primavera, sou rebento.
Da sua saudade, sou falta.
Da sua vida, sou amor.
Envolve-me.
Sublima-me.
Viva-me!

9 de dezembro de 2011

Beiço do mundo

                                                                                                             Ruy Castro

A velha Hollywood nos ensinou que tudo nos EUA era maior, melhor, mais limpo, justo, ético, honesto, adulto, moderno, eficiente e perfeito do que nos outros países. Também pudera - os americanos eram o povo mais bonito, forte, corajoso, engenhoso e talentoso do mundo. Onde mais as pessoas saíam cantando e dançando pelas ruas com naturalidade e ao som de uma enorme orquestra invisível?
E quem cavalgava melhor e tinha os cavalos mais velozes? O cowboy americano. Não havia índio ou mexicano que o capturasse, exceto à traição, coisa que, aliás, eles viviam fazendo (e de que o cowboy americano era incapaz). O mesmo se aplicava ao soldado americano em relação aos alemães e japoneses - quem era o mais heroico, o mais desprendido, o mais inteligente? E a Marinha americana? Quem tinha porta-aviões mais imponentes? Quem usava camisas de manga curta mais brancas? E quem mais tinha milhares de marinheiros que sabiam sapatear?
Nos filmes, víamos maravilhas que faziam parte do dia a dia dos americanos e de ninguém mais: cerveja em lata, barbeadores elétricos, cortadores de grama, trevos rodoviários (filmados de avião), edifícios de 90 andares e naves que iam à Lua e voltavam. E quem seria mais poderoso que o governo dos EUA, capaz de movimentar estruturas gigantescas para plantar um exército inteiro em território inimigo a 15 mil km e resgatar um espião a minutos de ser descoberto?
Todas essas eram benesses do poder e da riqueza. De repente, fico sabendo que o dinheiro no caixa do Tesouro americano vai acabar na terça-feira e que a Casa Branca, com uma dívida de US$ 14,3 trilhões, ameaça dar o beiço no mundo.
Inacreditável. Como pode o governo americano quebrar? Se acontecer, quem vai pagar a conta da lavanderia que mantinha as camisas tão brancas?

23 de novembro de 2011

Agora, ficas em mim

És o que senão matreira?
Sem esforço me invades.
Já éramos antes de ser.
Um vulcão inativo. Tu em mim.
Apenas aguardando o exato momento
da erupção.
Agora, ficas em mim.
Então emergiste
em magma e cinza.
Lavas e petrificas todos que a trouxeram aqui.
Ativaste este vulcão lavando suas rochas
sulfurosas neste cafarnaum.
Agora, ficas em mim.

Voltas ao centro da Terra comigo.
Da tua linda superfície florida
ao teu calor interno de ferro
que me nutre todos os dias.
Escorres e moldas as paredes que dispus.
Agora, ficas em mim.
Nadas como sereia em minhas fendas
por ti abertas. Toma-me em êxtase.
Deleitas meus novos caminhos
do núcleo à boca. Cozes teu amor
em minha vastidão deserta ocupada por ti.
Agora, ficas em mim.
Fechas meu acesso superior
com tua inocente sombrinha xadrez.
Massageias meus sulcos de lava
em tuas mãos ferventes.
Ou congela-me se quiseres.
Agora, ficas em mim.

20 de novembro de 2011

Um grito

Um grito. Um brado para dentro que ninguém ouve. Um andar perdido em meio a multidão que passa sem parecer ter rumo. Para onde vão todos? E esses carros? A senhora com o cachorro onde vai? Diga-me qual é última parada dessa linha.
Um grito. Um olhar que tudo vê e nada enxerga. Um desabrochar de misérias humanas boiando no mar da ignorância do eu. Ah a decepção! Que bom que nos decepcionamos com as pessoas. Triste seria se o outro vivesse preso a tua concepção do que é certo. A maior das prisões é achar que está liberto. Tua liberdade te faz refém.
Um grito. Um fazer que não ocupa o ócio. Um ganhar que inunda o ser com nada. Porque nada também preenche, às vezes mais do que o tudo. Imediatismo barato que ilude e rouba quem prefere o rápido, o raso, o momentâneo. O que é ganhar? Quem sabe venha a tua cabeça o dinheiro, o sorteio da loteria da Babilônia, uma linguagem secreta de cifras.
Um grito. Um cair que fratura a alma. Um amar que não é paciente. Se quer perfeição, aquilo que já está pronto, não se está disposto a renunciar com o outro. Vai se transformando em um campo minado. Sábio apóstolo Paulo, "o amor tudo suporta, tudo crê, tudo espera, tudo vence. O amor jamais se enfraquece", senão venceu não era amor, quem sabe status, necessidade, egoísmo.
Um grito. Um imaginar com a mão. Um sistema com muita informação e pouco conhecimento. Quantos cliques a senhora do cachorro deu hoje? Clica-se roboticamente. Que alguns loucos sobrevivam ao não imaginar.
Um grito órfão, indigente, marginal, que não ecoa ou reverbera. Um dia quem sabe adotem o grito, apesar de preferirem um sussuro.

21 de outubro de 2011

Haikai VII

Não suspiras para respirar.
Suspiras para desarmar o peito
Na mais bela forma de amar

17 de outubro de 2011

Uma salva dos teus risos

"Tira-me o pão, se quiseres, tira-me o ar, mas não me tires o teu riso."
Essa coisa preciosa toda vez que peço para me sorrir e sorri sem entender muito bem o porquê sorriu.  Esse riso contido nas bordas das tuas bochechas rosadas. Ri e se esconde atrás do braço. Um riso que me causa um riso com metade da boca. Tão luminoso que eu entraria com você sorrindo em qualquer beco escuro, sem lâmpada, lanterna, candeeiro, vela ou vagalume. Tão encantador que traria paz ao Oriente Médio. Tão misterioso que ofuscaria Monalisa. Tão cheio de significados que acabaria com bibliotecas inteiras. Tão inspirador que um poeta escreveria o dia todo sobre ele, teu riso. Não ri de escárnio, ri de amor. Como ri agora lendo isso, lembrando de como faço você rir inventando caretas de sorriso e pedindo para você rir, forçando a forma do riso com meus dedos em seus lábios. Isso me basta. Meu dia será dedicado a te trazer uma felicidade plena, para que assim, o teu riso me abra e feche os olhos a cada alvorada, a cada ocaso.
Quando eu morrer, já na velhice do teu riso, não quero uma salva de tiros, quero uma salva dos teus risos.

7 de outubro de 2011

Meu bonde passa pelo mercado

                                           Mário Quintana

O que há de bom mesmo não está à venda,
o que há de bom não custa nada.
Este momento é a flor da eternidade!
Minha alegria aguda até o grito...
Não essa alegria alvar das novelas baratas,
pois minha alegria inclui também minha tristeza
                                                 - a nossa
tristeza...
Meu companheiro de viagem, sabes?
Todos os bondes vão para o Infinito!

23 de setembro de 2011

O narrador de Schrödinger

Era um hotel de beira de estrada, desses que você sempre vê em filme americano. Madrugada a dentro eu lia Borges, Ficções. Sempre lia seus contos, deitado na cama, até o sono chegar.
Ouvi um murmúrio vindo lá de fora, do grande pátio na frente dos quartos onde ficavam os carros. Não decifrei de imediato o que acontecia, mas a discussão foi ficando mais alta e mais próxima dos quartos. Saí da cama e desavisado fui à janela. Com os dedos abri uma fresta na persiana. 
Era um assalto, três homens encapuzados com pistolas tinham passado pela portaria. De relance vi também o porteiro correndo com uma calibre 12 na mão. Não tive de me jogar ao chão, o tiro do assaltante fez isso por mim, mas ele não mirou em mim, ele errou o porteiro, desgraçado! Não tenho força para gritar ou me arrastar, ali, estirado no chão eu fico. Logo agora! Não tive tempo de terminar de ler o Funes. Uma mão fica no ferimento para estancar um pouco o sangramento e a outra em vão tenta puxar o telefone de cima da pequena mesa em frente a janela, agora sem vidro.
Quem diria, estou morrendo com uma bala perdida em meu peito. Realmente aquela história de passar um filme na sua cabeça é verdade. Revi minha vida em pouco mais de cinco segundos, agora mesmo. Dariam boas crônicas. 
O carpete bege vai se tingindo de vermelho. A cadeira da mesa cai com meu debatimento no chão, junto vem o telefone, que cai na minha cabeça. Nunca achei que uma telefonada na cabeça não fosse doer, essa nem senti, aliás não sinto mais nada. Não tenho tempo de perguntar: Por que estou morrendo? Querem me calar? Então isso é morrer. 
Se eu estou vendo alguma luz me buscar, se estou em um túnel? Não, não, ainda estou agonizando no quarto do hotel, a única luz que eu vejo é a mesma de sempre que fica acesa toda noite, a do abajur ao lado da cama.
Mas se eu morri quem está contando essa história, será que há mais alguém nesse quarto, debaixo da cama, dentro do armário, sobre o forro do teto? 
Ei você que está aí, o que vale mais, minha vida ou uma boa história? Não duvide que você tenha o mesmo fim, e não reclame. Ah entendi, você é daqueles que classificam as pessoas em prioridades e opções, os que te fazem bem e os restos. Entre seu individualismo perverso que chama de amor e a necessidade alheia. Pelo menos não verei mais as misérias de seres como você. Eu sei que está me ouvindo.
Eu que achava que nesse momento todas as questões se responderiam.
Malditos narradores, contam a história como lhe convém. Agora não sei se morri ou não, a sensação exata do gato de Schrödinger, eu criando um paradoxo, o princípio da incerteza. Vivo, morto ou morto-vivo? Só o fato de observar já afeta o observado, o entrelaçamento da história, função-psi... teria que esperar um narrador me contar. Esse infeliz ainda vai dizer que eu não lutei pela vida, mas desisto de me debater para chamar a atenção e alguma alma voluntariosa me salvar para ter uma história decente. Sem narrador a história fica sem personagem, portanto eu acho que não aparecerá nenhum salvador agora. Poderia ser a última das minhas narrativas, quem sabe uma epopeia.
Essa tal de morte não serve para nada mesmo.

25 de agosto de 2011

Ensaio sobre como é escrever (não escrever)

A sensação de escrever é como aprender a ler e ter novos olhos. Como tocar repique na fanfarra da escola. Como subir nas amoreiras, mangueiras e ameixeiras para comer fruto direto do pé, sem lavá-los. Como traçar as linhas do campo de futebol na rua do Jardim Alegre, com cal e água, esperando que demore alguns instantes para passar um carro, até que a mistura seque no asfalto. Como arrancar a "tampa" do dedão chutando o meio-fio e a bola ao mesmo tempo. Como ficar quinze minutos em algum canto no esconde-esconde, e na corrida até o pique o seu chinelo arrebentar. Como escolher o seu time. Como ter e colocar apelido. Como escapar a corrente da sua bicicleta, justo na descida de uma trilha em meio ao mato. Como inventar brincadeiras que geram discussões, já que suas regras não são bem claras: "saiu; eu já tinha batido; hoje não; vocês combinaram antes; 'primeirinho'; vai chutar forte então; foi na trave; passou por cima; nem pegou em mim". Como atrair o cachorro para o outro lado da casa da vizinha e alguém entrar rapidamente pegar a bola. Como apostar uma Coca-Cola com o time da rua de cima. Como sua mãe chamar você para o banho ou janta, logo quando a coisa estava boa. Como aprender a jogar dorminhoco, rouba-monte, pife, canastra e truco. Como ultrapassar o pseudolimite da meia-noite conversando em frente a casa do seu vizinho. Como tomar café da tarde a cada dia na casa de um amigo, todos saberem o nome da sua mãe e o gosto do seu café. Como participar dos grupos de jovens da sua igreja. Como começar a gostar de uma menina. Como beijar pela primeira vez a prima de um amigo. Como criar outros círculos de amizades, da rua, colégio, igreja, família. Como "matar" aula de biologia para jogar futebol. Como ter vergonha de apresentar trabalhos. Como viajar à exposições, feiras, pontos turísticos ou jogos. Como iniciar o processo de empatia. Como torcer para que a maioridade chegue rápido. Como fantasiar sobre o futuro. Como dar valor as coisas simples. Como os "comos" começam a sumir. Como ter e ativar sua máquina do tempo. Como esquecer de algum como. Como escrever, é assim.
Paro de escrever. Foi como, só foi. Agora é. Não é mais sua mãe, mas a vida quem chama. Não para o banho ou a janta, mas para a realidade sem "como", com "é". Talvez minha escrita seja o problema. Porém preciso de personagens como: D'artagnan, Dom Quixote, Gulliver, Dr. Lidenbrock, Pequeno Príncipe, Sherlock, Julieta, Capitu, Dona Flor, Diadorim, Odisseu ou Leopold Bloom, Godot, Poirot, Terra. Ou cenários: Sítio do Pica Pau Amarelo, biblioteca de Babel, campo de centeio, o sertão. É isso que alimenta meu vocabulário com muito como. A fantasia nossa de cada dia.
Não escrevo no mundo do é, apenas do como. Somente a realidade não inspira, preciso inventar. Escrevo quando os "comos" aparecem, uma tentativa de eternizar instantes com palavras. Quando somem ou não aparecem eu me afasto das palavras.
É como eternizar tudo isso. Inventando, escrevendo, lendo, lembrando, chorando, amando, rindo. Vivendo.
Como não conectar mais a primeira frase a última. Como não fazer mais sentido. Como não acabar a fantasia. Como aprender a terminar um parágrafo sem importância.

Acabou o como, paro de escrever.
Como agora.

Haikai II

Sala com fogo na lareira
lá fora chuva na calha
dentro chão de goteira.

Haikai I

No ônibus mãos erguidas
elas esperam seu ponto
quantas realidades parecidas.

20 de julho de 2011

Ou ponto. Ou interrogação?

Minha linguagem não é feita de pontuação! Esconjuro ponto final, dois pontos, reticências, vírgula, ponto e vírgula e ponto de exclamação. Exceto um, o de interrogação. Este encanta. 
Os demais pontos separam palavras, discursos, ódios, amores, certezas e incertezas. Falo sobre vivência, não literatura pontuada como esta. 
A interrogação atrai as palavras. Esses são seres animados do mundo que cito. Lá adiam começos, finais, términos, despedidas e orgasmos. Não há pontos de convergência, de sutura, de fusão, de ônibus, de táxi, de coleta, de armazenamento, de prostituta, de carne. Apenas de interrogação. Nunca se chega ao ponto. Desmembraram a palavra ponto da interrogação. Vivem indagando sem ponto e pausa, sem explicação e espanto. Interrogação como patrimônio da humanidade. Cultuando a dúvida como opção de liberdade, mesmo que ela seja uma corda e se enforquem nela.
A pontuação que vá para puta que a pariuque deve ter sido alguma linguista pentelhacomo aos montes que encontro por aí adorando um ponto final, dois pontos ou um ponto de exclamação.
Ponto final?

12 de julho de 2011

Piruá na praça

Comecei o discurso na praça sem saber o que dizer: "Sempre tive certa admiração pelos piruás. Os grãos de milho que não estouram. Faço questão, que se algum grão tiver uma mínima fissura em si, eu o trituro para dar-lhe o título de pipoca, mas de maneira inversa as outras. Inverso, eis a beleza. É o grão que sob o fogo não deixa de ser o que é para ser bonito para alguém. A tal da ditadura da beleza. É preciso estar ao inverso para se assustar quando ouço uma garota de 16 anos, dizer que gasta R$700 por semana, no salão de beleza. É preciso estar ao inverso para apreciar mais inteligências do que músculos.
Se eu conhecesse Rubem Alves, discutiríamos. No seu texto, 'A pipoca', ele faz uma analogia em que diz que o piruá é aquele que se recusa a mudar, que o único destino do piruá no fundo da panela é o lixo. Não querendo afrontar um dos grandes escritores contemporâneos, mas não acho que seja por aí.
O inverso é como Policarpo de Esmirna que foi levado a fogueira pelos romanos, mas não queimava. O inverso é como o milho levado a panela que não estoura, o piruá. Este tipo não pode ser considerado o lixo, ele é o bravo. É algo que não quer ser como o resto branco, uma flor linda aos olhos de quem vê, que alimenta bocas famintas que rejeitam piruás. Ele ainda pode ser germinado. Pode ele ser o gerador de outras pipocas, volúveis pipocas.
Donos de histórias incríveis, se juntarmos todos piruás formaríamos um grande exército da resistência. Já as pipocas, essas pobres desabrocham e morrem, sem ter o que contar.
Não quero criar metáforas para milhos e homens, só enalteço a coragem dos bravos..."
O pipoqueiro cortando minha fala, apenas me disse com sua boca murcha: "É dois reais, campeão!".
Olhei para trás e vi uma fila que tinha se formado, um tanto quanto impaciente, obviamente esperando sua pipoca, e não para escutar minha explanação.
Tanto falei dos piruás que no meu saco só restou pipoca e bacon, que é como angu sem caroço.
A verdade é que eu queria uma pipocada filosófica na praça ou pelo menos uma conversa rápida, não funcionou. Fui correndo pegar meu ônibus que já estava de saída, como sempre, como um piruá.

6 de julho de 2011

Horóscopo - Retrato II

Hora do café da manhã que eles tomam juntos todos os dias. Bernardo chega na cozinha e Carol já está sentada à mesa com seu inseparável notebook. Por costume, ela sempre sai da cama antes e deixa o café sendo preparado na cafeteira. 
Ele dá uma ajeitada na camisa que está por dentro da calça e leva o fragrante café, forte como ele gosta, até a mesa. No caminho ele faz um afago na sua mulher, beija seu rosto suavemente e em um relance vê o que ela lia no computador. Usando ironia a questiona, já sentado do outro lado da mesa:
— Lendo o horóscopo de novo, amor?
— Deixa eu imaginar que alguém pode saber o que vai acontecer comigo durante o dia, e no fim dele nem lembrar qual era a previsão. 
— Ah, então é assim que funciona?
Agora conversam como se seus olhos se interpenetrassem, as sobrancelhas dos dois descem e os risos ficam armados. Carol, continua em um tom ameno, é assim que dialogam:
— Pelo menos comigo é.
— Não adianta eu te falar de novo né? Que isso era usado como previsão de tem-po, para a colheita e consequentemente o bem estar do povo, que o astrólogo do rei ou faraó era uma das pessoas mais importantes na sociedade, que o sistema foi ficando ultrapassado e com isso surgiram furos durante toda a história, e que de repente a partir da fusão com a mitologia grega, ele começou a ser usado para prever o fu-tu-ro. E a senhora pare com esse sorriso cínico!
— É que você não vê o brilho dos seus olhos defendendo a sua posição, mesmo eu sendo sua esposa.
— Isso tem a ver com meu signo? - Pergunta ele desarmando o sorriso.
— Não sei. O que eu lembro é que nossos signos combinam.
— Um agradecimento aos deuses do Olimpo então, se é que deve ser a eles o agradecimento. Pelo menos agora não precisa mais ir na banca comprar a revistinha do grande João Bidu, pode ver na internet.
— Mania sua de querer usar seu racionalismo na crença das pessoas. Fazer o que se bebem da água errada?
— Fé. Senhor, eu acredito, mas aumentai a minha fé.
— Amém!
— Sabe que não ligo muito, mas gosto de discutir sobre. Eu relevo isso por você. Só não acho que uma mulher inteligente como você precise ler horóscopo, mas tudo bem. Vamos embora que está na hora de trazer o leite para casa.
Enquanto ele saía da cozinha em direção a porta da sala, ela leu o horóscopo dele.
"LIBRA: Amor - Vênus entra no seu signo e deixa tudo no melhor estado possível, apenas evite brigas por pequenos detalhes no relacionameto, relevar é a palavra."
Carol riu sozinha lembrando da recente fala de Bernardo. Apesar de não ser de libra, quem vai relevar os pequenos detalhes na relação para não fugir da recomendação é ela, que vive lendo dois
signos diferentes.

4 de julho de 2011

Medrismos

Vivo procurando esse algo. Talvez eu procure pelo nome errado. Não sei se procuro por aventura ou sobrevivência. Adoro utopias e caças ao tesouro, uma espécie de Indiana Jones, que não corre de grandes bolas de pedra, mas sim de grandes medos. Medo de não encontrar, medo de encontrar o não imaginado, medo de perder, medo do encontrado não poder vir junto, medo do encontrado não querer vir junto, medo de dormir e sonhar, medo dos caminhos, medo dos abismos, cordilheiras, serras, montanhas e desfiladeiros onde procurar, medo de cair, medo de virar a esquina, medo dos corredores de supermercado, medo de ventos uivantes, medo de dia chuvoso, medo da lucidez, medo de gritar, medo do espelho, medo dos meus enigmas, medo do meu medo, medo do me do e do, e do... Meu santo graal, só busco.
Talvez o que eu procuro me procure, nos tornamos uma ouroboros. Um cachorro caçando seu próprio rabo.
O medo é a garantia da existência humana. Continuo procurando, até achar ou algo me encontrar em seu medo.

27 de junho de 2011

Teorizando o amor: Força forte - Retrato I

Bernardo sempre foi cheio das teorias. Após elaborar um pouco mentalmente, começou a contar sobre uma delas para Carol. Deitados no sofá, debaixo de um cobertor, ele olhava para fora procurando as palavras em meio à chuva silenciosa que pintava o vidro da janela.
Há 40 anos, a cromodinâmica quântica descobriu que os opostos não se atraem tanto quanto os iguais. Há dois dias, eu descobri que os opostos não se atraem tanto quanto os iguais. Foi em uma aula de física, em uma aula estranha. Percebi um paralelo entre a física nuclear e os relacionamentos.
O professor falava da tal "força forte". Na física, há basicamente quatro forças: Força gravitacional, força eletromagnética, força fraca e força forte. Todos os fenômenos da natureza estão ligados a uma dessas forças. A força forte me chamou a atenção. No colégio, estudamos apenas a gravidade e um pouco de eletromagnetismo. Esta ensina que corpos com cargas elétricas inversas se atraem, e corpos de mesma carga elétrica se repulsam. Isso levou algumas pessoas a acharem que na vida o mesmo acontecia, pessoas diferentes é que se atraíam. Porém, acho que é hora da outra força mostrar-se. A força forte tem uma intensidade bem maior que a eletromagnética. Obviamente, opostos se atraem, mas não na mesma proporção que os iguais, como mostra a força forte.
O paralelo é que uma delas é como a paixão carnal, que age em distâncias maiores, atraindo os opostos. A outra é como o amor de grande cumplicidade, que se aplica apenas em escalas microscópicas, atraindo os iguais.
Ora, se cargas elétricas iguais se repelem, como ficam unidos os prótons nos núcleos atômicos, já que estes têm a mesma carga positiva? Aí entra a força forte. Se ela não existisse, não existiria núcleo atômico, não existiria átomo, não existiríamos, não existiria amor. Ela consegue unir duas cargas idênticas, seu nome não é à toa, ela é forte! Sua ação começa a existir quando a distância entre as cargas iguais, fica menor do que 10-13 centímetros. Para se chegar a essa mínima distância tem que haver um esforço, há necessidade de entrega, de confiança, de alegria. Acho que é a distância entre dois corações que se amam, acho também que é especificada por Deus em algum momento da criação. A partir dessa medida, qualquer esforço para separação destas cargas, exije quantidades astronômicas de energia. Sua separação causa grande liberação de energia, é o que acontece em algumas bombas atômicas, a separação do núcleo atômico deixa sinais irreversíveis.
Você tanto fala que “os opostos se distraem, os dispostos se atraem”. É isso eu acho. Nós nos dispusemos. Você titubeava e eu me aproximava, sem pressa, sem causar turbulências em seu núcleo, até nos transformarmos em um único. Afinal já éramos iguais, nos tornamos idênticos. Aos poucos fomos nos aconchegando em nosso núcleo, até chegar naquela distância mínima. Essa força forte não envelhece ou acaba, então a ideia é não deixar que energias externas separem esse núcleo, algumas vão tentar, é assim que funciona a natureza, mas não se esqueça, nós temos a maior das forças, a força forte, o amor. Somos como um núcleo de hélio, dois prótons dividindo o mesmo espaço, coesos e unidos harmoniosamente... Somos iguais em nossas diferenças.
Bernardo parou de repente quando deixou os respingos de água na janela e observou Carol, já com uma lágrima suspensa em seus rasos olhos castanhos, ela o fitava. Não sendo muito afeito a emoções ele retomou:
— Então tudo é uma questão de física teórica, eu só concluí isso, porque a gente vive isso...
Carol o interrompeu em um rápido gesto. Seu dedo indicador, verticalmente, encostou-se aos lábios de Bernardo, como que pedindo silêncio. Ele suspendeu a fala e com o dorso da mão enxugou a lágrima dela que teimava em não descer. Ela tomou fôlego, deixando enfim outra lágrima molhar seu rosto de expressão contente e disse de uma vez só:
— Eu adoro o jeito como você fala da vida, eu adoro o jeito como você teoriza nosso amor, eu adoro o jeito como você me fala do seu mundo, eu adoro o jeito como você me ama. Das coisas que entendi me restaram duas. Sim, temos a força forte. Sim, somos iguais em nossas diferenças. Eu te amo, Bernardo!
Um breve silêncio gélido findou-se quando a lágrima de Carol, encontrou o sorriso contido de Bernardo, em um estalado beijo sob as pinturas da chuva na janela, agora finalizadas.

7 de junho de 2011

Obrigado, Ronaldo!

Hoje um dos maiores casos de triângulos amorosos acabará com um apito. Pelo menos nos gramados famosos do mundo futebolístico. Ronaldo, bola e rede. Os três juntos são sinônimo de gol, de euforia. Um amor incondicional, visível até para os que não são amantes do futebol. Não sei bem se é um triângulo, está mais para círculo amoroso. Amor mútuo entre bola e Ronaldo, entre bola e rede. Um carinho quase maternal desde 1993, quando Ronaldo, foi entregue ao esporte bretão. Como se o cadarço da sua chuteira fosse uma espécie de cordão umbilical que liga o craque a mãe. A bola. Bola de papel, de meia, de couro, de capotão, de material sintético, não importa. Todas mães não são iguais? Pois é, todas bolas são iguais. Elas adoravam ser tocadas pelo Fenômeno. Assim como as redes adoravam estufar com as bolas que saíam dos pés de Ronaldo.
É apenas um texto de um apaixonado por futebol, por bom futebol. Quem não gosta desse esporte pode não entender a grandeza do dia de hoje. Não é apenas mais um jogador pendurando a chuteira. Não é apenas mais um que se aposenta com o bolso cheio de dinheiro que ganhou em um esporte em que 22 sujeitos correm atrás de um objeto esférico. Não. É a encarnação de um brasileiro que saiu da favela como muitos outros nesse esporte, mas que conquistou o respeito do mundo, e levou com humildade o nome do Brasil para os que não acreditam nesse país. É a realização da esperança nos jovens que se veem nesse ídolo. Ídolos que o Brasil tanto sente falta. É a perseverança que se mostra mesmo depois de quase todos dizerem que você está acabado. Mesmo após oito cirurgias.
Há um lance apoteótico que traduz toda capacidade desse homem. O primeiro gol na final da Copa de 2002. Ronaldo perde a bola em um lance de perigo para o Brasil, quase tropeça e o zagueiro alemão tira, ele fica no chão. Não o tempo suficiente para mostrar que estava certo quem dizia que ele estava acabado. "Num tapa", como diria meu avô, ele se levanta, corre em direção a sua amada, a toma do zagueiro e entrega para Rivaldo. Este sem titubear ajeita com a esquerda e bate. Kahn, o "jogador da Copa", o grande trunfo da Alemanha, bate roupa na linguagem do futebol e por um instante a bola fica orfã em frente ao gol. Primeiro esperando um contato para depois enfim encontrar a rede. O Fenômeno que a pouco caía, agora empurrava com carinho sua amada para o gol. Do chão à apoteose, como dito. Rrrrrrrrrronaldo gritou o Brasil.
Ele ainda me deu o prazer de vê-lo jogar em campos brasileiros, no meu time, marcando gols inesquecíveis que contarei aos meus netos em algum domingo, em uma final de Copa.
Hoje, o maior artilheiro das Copas, será recepcionado no Pantheon do futebol por outros gênios: Pelé, Maradona, Zico, Zidane, Garrincha, Di Stéfano, Puskas, Yashin, Cruijff, Beckenbauer...
Quando o apito soar só poderei agradecer por ter visto um dos maiores de todos os tempos. Suas arrancadas, dribles, chutes e passes ainda estão em nossas retinas, mas principalmente, não esqueceremos de como ele caía e se levantava. 
Segue o jogo.
Obrigado, Ronaldo! Obrigado, Ronaldinho! Obrigado, Fenômeno! Obrigado, gordo!

30 de maio de 2011

Sonhando o sonho dos sonhos


Sonhei vários sonhos. Ao todo uns doze sonhos. Entrei nos sonhos. Os sonhos viraram uma realidade. Os desejos daqueles sonhos se esgotaram na realidade. A realidade saiu dos sonhos. Morreram os sonhos. Agora nessa nova realidade sonho outros sonhos. Como os sonhos de outrora que sonhavam em ser sonho. Os sonhos não só foram, mas também se foram e ainda serão sonhos. Sonhando.

13 de maio de 2011

Sobre os tempos

Acordei em um vislumbre. Podia ver a malha do tempo como ninguém tem acesso. Sem fatores psicossomáticos, sem interferência da luz, sem ideais de física moderna, mecânica quântica ou metafísica. Era o tempo despido dos seus trajes terrestres.
Naquele lugar, segundo os gregos antigos, eu vi apenas o chronos, sendo que o kairos unicamente o Criador tem acesso. Eu estava na 4ª dimensão (temporal), sem estar nas outras três (espaciais). Havia uma gigantesca máquina, a “Inacessível”. Era regida por controles numéricos interligada a uma pequena rede de acontecimentos. Ela patinava, rangia e costurava uma pequena fita de fatos. Não tive nenhum tipo de explicação.
Acredito que ali era o princípio, o famigerado Big Bang, a origem do Universo, o gerador do tempo. Antes dele não tinha o que medir, não havia tempo. O zero é a explosão. Explosão que encobriu o som do início do movimento das engrenagens da grande máquina, o relógio, o marcador de eventos. O tempo começou a ser medido através de sequenciamentos, de eventos coincidentes, coube ao homem definir os eventos. O principal é o movimento terrestre que gera a alvorada e o crepúsculo. O tempo só serve para medir coincidências, se não há alguma transformação, não existe a necessidade de mensurar.
Parei por um instante e me escorei na malha observando o tempo. Já que o tempo é assim mecanicamente definido por nós humanos, por que então o tempo das diversas pessoas é tão diferente? Uns aceleram, outros freiam, alguns deixam como está e há os que esperem o tempo de Deus. Por torná-lo assim mecânico, nossa vida começou a se basear no tempo e se tornou como tal, um tédio defindo por fases.
O tempo passa – se é que passa mesmo – incrivelmente devagar perto de certas pessoas, elas conseguem deformar o espaço-tempo com suas massas, donos de quase antíteses. Admirável. O silêncio oportuno, a sensação de medo, o afago de consolo. Dias longos, anos curtos. Isso é um dom, o tempo independe de qualquer esforço feito por nós.
O manual de operação da máquina dizia em seu subtítulo: “Tempo não é médico, medicamento, agrado ou esconderijo”. Pode ser que fosse uma tentativa da Inacessível em se desvencilhar de qualquer culpa que nós atribuímos ao nosso tempo. Estando bem ou mal, ela vai continuar girando, rangendo, costurando, contando, passando, badalando, tictacqueando, enlouquecendo-nos. Pode jogar uma chave inglesa nas engrenagens, tirar a pilha, atrasar, jogar pela janela, não adianta, o que importa nesse sistema está inacessível a você. A fita de fatos. Ela costura suas ações à sua vida e ao seu tempo. Se costura não pode ser desfeito, senão costura a fita continua sem olhar o passado.
Até quando você vai achar que o tempo passa a seu belprazer curando tudo? Não coloque a consequência das suas escolhas no dito cujo. Tempo é tempo, cura é cura, afastamento é afastamento, mas não há vice versa! Como, o ovo que é galinha, sendo que a recíproca não é verdadeira. Quem sabe o problema esteja na sincronia do seu relógio com o Inacessível. Quem sabe as transformações ou coincidências que você usa como base para a medição sejam fracas para tal nível de precisão temporal na costura. Quem sabe seu Big Bang ainda nem tenha acontecido, sua fita de fatos não tenha saído do lugar e você não saiba onde está seu mísero relógio, mesmo que ele perturbe sua cabeça e o leve a fatos de um passado sem marcação de tempo.
Comecei a perceber que aquilo não estava lá há 15 bilhões de anos, desde a origem do Universo. Estava lá desde que percebi o meu tempo, era o meu relógio sincronizando com o Inacessível. A fita de fatos a partir da minha explosão ligava fatos temporais medidos por mim.
É sobre o seu tempo e aquele tempo.
 “Trim trim trim” – a transformação da alvorada tinha início.
Dormi em um vislumbre. Como se tivesse tacado o despertador na parede.

30 de março de 2011

Janela dos sentidos


É madrugada.
A essa hora resta pouca coisa para os ouvidos. Em primeiro plano música instrumental, o cooler e o tec tec das teclas do notebook dão o tom. Ademais o eco dos velhos caminhões de lixo rugindo pela cidade adormecida. Buzinas esparsas na escuridão trazem consigo roncos de motores, sons altos e o barulho do pneu sobre o asfalto, como um avião rompendo a barreira do som, quando passam em cima de uma tampa de galeria pluvial solta, que gera dois estrondos quase seguidamente. Ambulâncias e suas sirenes estridentes se desfazendo ao longe com o efeito Doppler. O grave vem dos aviões rasgando o breu em meio a densas nuvens, contrastando o zumbido torturante do pernilongo que invariavelmente chega atazanando a tranquilidade. Um ruídoso jornal que varre o chão junto ao vento parece procurar alguma parede para se encostar enfim. O bater das asas do pássaro, em um uníssono com um grito de alto grau etílico, fecha a janela e o último movimento da silenciosa sinfonia, regida por bocejos incontroláveis.
A essa hora resta pouca coisa para os olhos. A televisão muda para evitar o sonoro “piii” do fechamento da programação, mostra faixas coloridas na horizontal, às vezes misturadas aos fantasmas e vultos provocados pela falha na recepção do sinal. O display do aparelho de som pisca insistentemente 0:00, sincronizado com o cursor do Word que teima em ficar no mesmo lugar, como que tentando irritar ou atrasar o passar do tempo. O reflexo do rosto no vidro da janela é distorcido pelo vento, que faz a persiana mexer-se a todo o momento, passando em frente à silhueta. Da janela outras poucas janelas continuam iluminadas com uma coloração alaranjada, parecida com as luzes dos postes da rua, que no horizonte confudem-se com o céu nublado, ora revelando, ora ocultando a lua crescente. Um céu que não favorece a escrita, já que nem as estrelas aparecem em uma tentativa de comparação com olhos da suposta amada. Lá embaixo só resta um cachorro em meio ao sono e o carro do vizinho em meio à sujeira. O vento ainda balança as copas das tipuanas, que fazem uma espécie de ballet nas calçadas e ruas, que servem como palco para as grandiosas árvores madrugueiras, suas folhas caem em movimentos suaves até encontrarem o chão. Cessa o vento, se fecha a janela, fim do primeiro ato.
A essa hora resta pouca coisa para o nariz. O cheiro ainda forte da loção pós barba remetendo a notas campestres, silvestres, que se misturam ao café, restando um perfume delicioso a cada vez que se aproxima a xícara de porcelana, do rosto. Teima em ficar no travesseiro um odor característico que sabe bem de quem é, e torce para que não saia dali tão cedo. Na primavera fica o cheiro quase imperceptível, mas que a essa hora é aguçado, o cheiro das flores da tipuana. Doce como do seu travesseiro, inconfundível como do seu café, denso como da sua loção e misterioso como da sua janela.
A essa hora resta pouca coisa para a pele. A lisura confortável do plástico do computador quase lembra outra pele, não a da cutícula que continua cutucando e tirando-a com os dentes. O pó no cotovelo denuncia a falta de limpeza no parapeito da janela, ao tirar a poeira percebe um pequeno ressecamento naquela parte do corpo. As pequenas brisas arrepiam o braço, esfrega as mãos e com elas atrita a região arrepiada, estala os dedos, coça a mordida do pernilongo e passa a mão no queixo, indagando a si mesmo alguma coisa que há horas paira naquela janela.
A essa hora resta pouca coisa para a língua. O creme dental de menta ainda está lá e mistura-se ao amargo do café em um gosto hermético, exótico, que chega a retomar a refrescância do fim da escovação, principalmente quando inspira o ar pela boca, esta que em instantes pedirá água. Água para tomar olhando pela janela, e elucidar o que seria aquilo antes que ela se feche.
A essa hora resta pouca coisa para os sentidos. Eles se tornam misantropos.
Há alguma coisa lá fora que interfere nos seus sentidos e deixa-os assim. Essa coisa brinca, irrita, empolga e mutila. Como é difícil sentir. Quando a janela se fecha acontece uma espécie de reunião dos sentidos em uma ágora para decidir o que importa, filosofar sobre aonde eles podem te levar, como podem chegar lá, tudo isso sem perguntar nada ao interessado. Só resta imaginar. Quando a janela se abre e está lá para sentir, se sente. Senão, não se sente. É simples.
Ouve mais do que vê. Vê mais do que cheira. Cheira mais do que saboreia. Saboreia mais do que pensa. Pensa mais do que quase nada.
Não se pensa muito, o sentir já foi definido antes da janela se abrir. O pouco que pensa transforma-se em palavra, essa sim com poder para barrar ou aprovar os sentidos. A palavra forma-se entre o fechar e o abrir da janela, descreve a discussão em ágora e como um sexto sentido, transcreve a sensação. 
Remoer o que pensa para apalavrear o abrir da janela, remoer para tentar digerir alguma falácia da palavra e sentir por inteiro. O sexto sentido todos têm, a janela alguns perdem.
Cuide bem da sua janela.

Poema concreto


Thiago de Mello         

O que tu tens e queres saber (porque te dói)
não tem nome. Só tem (mas vazio) o lugar
que abriu em tua vida a sua própria falta.

A dor que te dói pelo avesso,
perdida nos teus escuros,
É como alguém que come
não o pão, mas a fome.

Sofres de não saber
o que tens e falta
Num lugar que nem sabes,
Mas que é tua vida
Quem sabe é teu amor.
O que tu tens, não tens.

24 de março de 2011

Analogia embriagada

Perdeu. Perdeu depois de 12 assaltos disputados. Perdeu sem ir uma vez sequer a lona. Perdeu na contagem dos juízes por 2x1. Perdeu por um jab que abriu sua guarda e deixou que o direto entrasse, foi por isso que perdeu, por dois golpes. Perdeu da pior maneira possível, ou da melhor, não sei, mas que tristeza daquele homem. Ficou dias e dias pensando, "e aquela hora, como o cruzado não entrou?", "eu fiz o possível, mas poderia ter sido mais agressivo, ter tomado a frente da luta!". Estava convicto de que não foi o adversário que ganhou, mas ele que perdeu. O sentimento de culpa o corroía como ferrugem em aço velho.
Após algumas ferrugens, doses, esquinas, prostitutas, brigas e porres ele descobriu a verdade. Para ele a verdade se tornou simples, "eu perdi porque ataquei menos". Ele via isso nos vídeos dos grandes vencedores atacadores, Joe Louis, Muhammad Ali, Jorge Foreman, Joe Frazier, Rocky Marciano, este que em 49 subidas ao ringue nunca conheceu a derrota. Todos com ataques fulminantes, o que valia era o nocaute.
Em algum momento de embriaguez conversando com um velho garçom chegou a outra conclusão por analogia. "A vida é como uma luta de boxe, quase sempre ganha quem ataca mais, quem arrisca mais"...Quem arrisca aquele jab para abrir a defesa alheia, quem troca a passada para pegar o contrapé, quem deixa de planejar um pouco e usa mais o feeling.
Esse homem se tornou o terror dos campeonatos amadores do subúrbio de Nova Iorque, sua luta ficou impecável com a verdade. Agressivo, mas ortodóxico. Técnico, mas impulsivo. Aprendeu que deveria lutar como vivia e vice-versa. "De cara para o vento arriscando, porém com a guarda alta meu filho, sabendo a hora de baixar e atacar, você não sabe o que vem por aí", dizia ele nas suas filosofadas.
Se funciona? Não dá para saber até você arriscar!
Saia da defensiva. Ataque. Um jab, abriu a guarda, um direto, outro, um cruzado de esquerda, foi a lona, abriu a contagem. Um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez. Nocaute, o vencedor!

2 de março de 2011

Receita do não-sozinho


Tudo parece ser simples.
Não quer se decepcionar? Não conheça ninguém. Uma boa pedida é fazer uma visita a algum tipo de monge ocidental eremita, ou mais sociáveis do tipo tibetanos, mesmo assim é possível que você se decepcione com algum dos irmãos por alguma careca mais bonita ou a habilidade do canto gregoriano de outro.
Não quer se estressar? Se retire da vida profissional e de tudo que te causa raiva, ódio ou repúdio. O nível de estresse no Tibete chega a míseros 2%, esses 2% só por esperar um temido ataque de alguma força chinesa, como nos velhos tempos da dinastia Qing.
Não quer seus pais aconselhando/pentelhando sua vida adolescente ou na maioridade? Cristo, disse a certa feita: ”Renuncia-te a ti mesmo, toma tua cruz e segue-me”. Assim fazem ao extremo os cartuxos, filhos de São Bruno. Em seus mosteiros regados a silêncio, separados do mundo como conhecemos, onde saem uma vez por semana para um passeio sem ver ninguém, onde só resta a inexistência de rádio e tv, a impossibilidade de visitas (inclusive dos pais), um completo isolamento para uma completa contemplação até a morte. No Tibete algum Buda ou um Dalai Lama deve ter falado coisa parecida. Uma solução a sua rebeldia compreensiva.
Não quer trocar de amigos com o tempo? Indo a montanha você conhecerá os amigos que irão morrer com você, grande lealdade.
Não quer uma paixão arrebatadora que te cause traumas? Lá com os eremitas o que te resta é o amor ao próximo. Seu coração é todo doado ao irmão e a contemplação divina, sendo ocupado como um todo, paixões são vagas e banais nesses lugares.
Não quer ficar sozinho? Então volte todos os parágrafos e responda com um “quero” a todas perguntas e assuma suas consequências.
Decepcione-se com as pessoas, saiba que você também desapontou algumas delas. A perfeição é um caminho longo e tortuoso que pouquíssimos alcançam, sem sequer saber a real definição de perfeição.
Entre de cabeça no estresse, afinal ele pode ser seu ganha pão. Há prazer após o término do desafio, ao fim extravaze do jeito que achar melhor, inclusive podendo desapontar alguém.
Seus pais um dia você irá entender, portanto aproveite-os antes que compreenda. Chore, brigue fuja, ria, discuta, ame, do jeito que amar, com ou sem palavras, com ou sem atitudes. Você demonstra nem que os decepcione ou sua extravazada seja grande demais para a compreensão deles.
Aproveite seus amigos enquanto estiverem por perto e de muito valor àqueles que te acompanham há doze, quinze anos. Aos demais que vem e vão aproveite enquanto estiverem por aí. A máxima é diversão, parceria, sorria com seus amigos, sabemos que vai se desapontar com alguns deles, outros farão parte da sua extravazada e seus pais vão te chatear devido a algumas amizades.
Enfim, se encha de feridas com a navalha do amor. Se entregue, sofra e faça sofrer, traumatize-se, curta e deixe alguém cicatrizar seu ferimento. Tudo quase nessa ordem que parece ser lógica, seus amores te decepcionarão, serão motivo para extravazar, seus pais reprovarão  e depois aprovarão, amizades se renovarão, amores e paixões virão. Tenha histórias, estórias, músicas e causos.
Não é um texto do tipo que vira música do filtro solar, se encaixa mais como uma receita na Ana Maria Braga ou com a Palmirinha, a receita do não-sozinho. Adicione um quero para cada pergunta e acrescente sal à gosto.
Temos planos de meio-sozinho, consulte seu agente de vida.
Ainda assim mosteiros, eremitas, abadias, clausuras e montanhas parecem uma boa saída.