20 de dezembro de 2014

A quem se molha

De pequeno me descriei com o que aprendi e tudo que desaprendi veio da rua, da árvore, do rio, da palavra. Do folclore e do gentio. Com a palavra escrita que não falava, caí, com ela demorei a me deitar. Restou a chuva sacra respingandinho naquela porta velha emperrada de madeira envernizada. Coitado do menino que ficou atrás da porta velha emperrada, nem os pingos viu. Pobrezinho, não desaprendeu nada nessa vida.
E eu corri. Corri de formigas e de discos voadores. Construí hidrelétricas e ônibus espaciais.
E eu cansei. Cansei de pássaros e de gritos histéricos. Construí ilusões e cataventos.
Voltei logo quando a lua crescente vinha rasgando as nuvens, pensei ser um sinal, como aquele que me contaram dos reis magos, pena não lembrar o nome dos reis agora, na verdade queria ser um deles só pra ter um camelo e chamá-lo Gibraltar.
Quando cheguei, cansado, descobri que havia saído pelos fundos, como todo menino. E ele estava lá do mesmo jeito, sentado feito índio, o menino. De arranhão, braço quebrado, unha roxa, nem sinal.
Quem sabe era por isso que ele nunca saiu escondido, não era medo de pular o portão, era porque eu sempre voltava com os bolsos cheios de histórias e pitangas. A essa altura não há mais histórias, apenas memórias, ah o cheiro de pitanga molhada!
Pobrezinho, não desaprendi nada nessa vida.

10 de dezembro de 2014

Em teus olhos corre um rio Jordão que me batiza em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amor!

18 de setembro de 2014

Poema em linha reta

Álvaro de Campos (Fernando Pessoa)

Nunca conheci quem tivesse levado porrada. 
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo. 

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil, 
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita, 
Indesculpavelmente sujo, 
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo, 
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas, 
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante, 
Que tenho sofrido enxovalhos e calado, 
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda; 
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel, 
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes, 
Eu que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar, 
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado, 
Para fora da possiblidade do soco; 
Eu que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas, 
Eu que verifico que não tenho par nisto neste mundo. 

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo, 
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu um enxovalho, 
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida... 

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana, 
Quem confessasse não um pecado, mas uma infâmia; 
Quem contasse, não uma violência, mas uma covardia! 
Não, são todos o Ideal, se os ouço e me falam. 
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil? 
Ó príncipes, meus irmãos, 

Arre, estou farto de semideuses! 
Onde há gente no mundo? 

Então só eu que é vil e errôneo nesta terra? 

Poderão as mulheres não os terem amado, 
Podem ter sido traídos — mas ridículos nunca! 
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído, 
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear? 
Eu, que tenho sido vil, literalmente vil, 
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza. 

19 de julho de 2014

A anistia dos fugitivos

Cintilações ofuscam a saída de emergência pela porta ao final da escada, assim como as sirenes encobrem gritos de socorro. Tal como ao anoitecer, a revoada dos pássaros vem dissipando a capacidade humana de prever movimentos circulares, presentes nas baterias antiaéreas que agora são carregadas. Cruzam o céu atestados de óbitos anônimos - assinados por um cego que pode escrever, um mudo que pode ordenar, um surdo que pode consentir - de quem ninguém conhece.
O combustível dos geradores do hospital acabou. O sistema reserva falhou. Sistematicamente os equipamentos cessaram. A cada minuto um grupo aparece correndo para um lado, outro na direção contrária, sucessivamente. Se o impacto não acontecer aqui, acontecerá ali.
O prelúdio é composto por um carrilhão natural ao longo dos campanários da cidade, que retinem uníssonos uma marcha fúnebre em sinos centenários. Todos morrerão com honras militares, sob uma salva de tiros. O diálogo dos projéteis se encarregará do rito para encomendar as almas. Cada idiossincrasia é quebrada no desespero da miséria humana frente ao fim. Laissez faire, laissez aller, laissez passer.
Lembra-se do quanto tinha a necessidade de que o ouvissem, de que o aprovassem, ao menos o observassem? É agora que precisa disso, porém ninguém possui tempo para olhar para o lado. Quem triunfará? Então o último suspiro. O véu se rasgou. Ouve-se um sussurro: “és fraco, és fraco, és fraco. Cruzes. Cruzes”.
Todo o anacronismo é aceito em meio ao caos.
Houve um tempo em que paladinos se encarregariam da batalha, apenas eles. Ao que parece, se as histórias ainda fossem contadas pelos homens e suas memórias, lendas sobre o nosso comandante assustariam os selvagens invasores. Este homem, diziam meus avôs, ia para a mata onde estava o acampamento inimigo, sempre em noites enevoadas, encontrar algum sentinela. Levava uma pedra e uma faca. Com a pedra chamava a atenção do futuro morto atirando-a contra alguma árvore. Com a faca dilacerava seu pescoço. Por isso ficou conhecido como sorrateiro. Até morrer - vítima de vidas sintéticas, botões e cliques - por uma carta envenenada com ricina.
Após as primeiras explosões ficou atônito. Surdo e cego temporariamente. Imagens desfocadas do passado foram passando por si. Lugares, pessoas, sabores e cheiros que não mais fazem parte da sua vida. Instantes de paz sem ver e sem ouvir, agachado junto à fonte da praça central que foi até onde conseguiu correr no caminho para a casa. Parecia haver acabado, até a chuva lavar seus olhos. Voltou a ver a barbárie exposta nas ruas e desejou estar cego novamente.
Na corrida carregava chaves, porém as portas não alcançava. Voara como Ícaro, e tal como ele tentando deixar Creta, o calor, não do sol, mas das bombas, desmancharam suas asas. Foi-lhe amputada a possibilidade de fugir, pois se fugisse riria. Riria olhando para trás vendo si próprio escapar da desgraça. Fará agora companhia a mulher de Ló, em uma cidade destruída, por nós mesmos, por eles mesmos. Viverá impossibilitado de fugir como Ló. Entenda, mesmo assim viverá fugindo sem covardia. Fugindo. Fugindo como a vida foge da morte.

Agora salvo, saí da toca. Da fonte já não jorra água. Do carrinho de doces já não saem guloseimas. Da árvore já não se ouve o trinado dos pássaros. As mesas de xadrez quebradas da praça agora deram um novo perfil para as calçadas, que até poderiam ser um estúdio de arte contemporânea. A poeira ainda alta me faz lembrar o caminho para o sítio na estrada de terra batida, cercada por um milharal interminável num labirinto linear. O rangido da placa metálica da barbearia do outro lado da praça, que balança continuamente com o vento nesse agora silêncio colossal, embala-me no mesmo som de uma rede de algodão fixada na garagem de casa, fazendo o papel do pêndulo de um relógio marcando o tempo, que sem o embalo do meu corpo, porque adormeci, parece passar cada vez mais devagar. Até parar. Até o tempo parar.
“Procurarás em vão morder-lhe o calcanhar”. Procurou em vão. Acordei ao final da tarde quando o beiral não mais conseguia impedir que os raios impiedosos do sol baixo me queimassem os olhos. O céu sangrava. Fiquei observando até a escuridão da noite estancar o vermelho. A serpente também fugiu.
Seríamos nós Jacó ou Ismael? Menelau ou Páris? Milcíades ou Xerxes? Alexandre ou Dario? Balduíno ou Saladino? Joana D’Arc ou Guillermo de la Pole? Wellington ou Napoleão? (...)
Seríamos nós Vida ou Morte?
Saberá quando voltar a crescer capim ao redor dos balanços das crianças, quando perder a hora para o trabalho, quando cair depois de uma bebedeira, quando se cortar na cozinha. Há sangue correndo.
A morte tocou-me, mas não me mordeu.
Já não somos apenas bípedes, Schopenhauer. Se desiludiu-se não viverá recluso, voará fugindo e a cera aguentará até encontrar nova terra, ó homens do mar, que não riem na partida, apenas na chegada.
Não se pode vencer o invencível. Se não dói, esta é a anistia, então deleita a ferida do opróbrio.

27 de maio de 2014

O escritor vive

Jorge Luis Borges

O escritor vive. Ninguém é escritor das oito ao meio-dia e das duas às seis. Quem é poeta é poeta sempre, e se vê continuamente assaltado pela poesia. Assim como o pintor é assediado pelas cores e pelas formas, assim como o músico se sente procurado pelo estranho mundo dos sons, o escritor deve pensar que tudo é argila, com que fará da miserável circunstância de nossa vida alguma coisa que possa aspirar à eternidade.