15 de dezembro de 2011

Apocalipse segundo Lestachev

Pela areia da praia vem se aproximando, sem deixar pegada, Lestachev, anjo da província de Petersburgo, criado no rio Neva, do segundo Coro esquerdista, mensageiro das más palavras desde novembro de 1917. Voz empostada, trombeta numa mão, as sagradas escrituras noutra, ele começa a profetizar.
"Fantoche indômito. Espantalho da Wall Street. Acha que sabe dos mistérios entre o céu e a terra. Desça sobre vós a ira de meu deus Dario. Será imolado pela soberba. Receberá cada vez mais e mais sem saber onde colocar. Farei de vós uma cobaia do neoliberalismo, uma figura que demonstre o poder do capitalismo rico. Viverá de debêntures em Nova York, olhando gráficos em telas de computador durante oito horas diárias, tomando cinco xícaras de café e tendo gastrite aos 25 anos. Terá contas em paraísos fiscais: Suíça, Ilhas Cayman, Bahamas. Fará brotar dinheiro com suor alheio.
Seu lema será a liberdade acima de tudo, quem a possibilitará é seu dinheiro. Será individualista, preconceituoso e atrairá pessoas com sua riqueza. Terá 100 mil vezes mais do que precisa e achará que necessita de mais. Fraldará a declaração de imposto de renda. Terá sete casas, em cada casa sete carros, em cada carro sete prostitutas, em cada prostituta sete mil dólares, em cada dólar sete pecados capitais. Magoará a muitos, pois a prioridade são dígitos e não sentimentos.
Saberá com antecedência sobre fusões de multinacionais e ganhará milhões em minutos numa segunda-feira na abertura do pregão da Dow Jones.
Não verá teu filho dizer as primeiras palavras, dar os primeiros passos, o primeiro dia na escola, o primeiro gol no campeonato, entretando ele estudará em Harvard, ou Yale, e dirigirá um Porsche aos 18 anos. Terá um relacionamento superficial com sua esposa. O que ela mais fará é viajar com as amigas para Paris, Milão, Tóquio e Barcelona. Ela terá mais de um sapato para cada dia do ano, fará bazares com roupas usadas e usará o dinheiro arrecadado não para doar, mas para comprar roupinhas para a cadela, Shiva.
Terá tudo, mas faltará algo que não sabe o que é, só imagina que seja dentro, onde moedas não são aceitas como em máquinas de refrigerante. Um vazio, um buraco, um oco. A partir dos 40 anos viverá angustiado, tomará mais uísque do que pode e terá cirrose hepática. Não conseguirá mais tomar conta sozinho do seu tesouro, outras pessoas começarão a ajudar, mas seu dinheiro começará a aparecer em atividades ilegais. Tramas políticas, dossiês, assassinatos e corrupção. Terá laranjas. Lavará seu dinheiro dos paraísos fiscais e fugirá antes de ser preso para uma fazenda no meio da mata, no Peru. Após alguns anos, sua mulher fugirá com um jovem latino e seu filho se envolverá com o narcotráfico.
Suas fontes peruanas denunciarão que a polícia internacional está cada vez mais próxima de seu esconderijo. Num ato desesperado aos 50 anos, que é agora, redige seu testamento, hoje não muito mais que a única propriedade em meio a mata e um carro. Então se vê sozinho. Sem passado e futuro. Para onde foi toda aquela gente, além da esposa e o filho. Sua vida não faz mais sentido entre nós, a não ser para beber, sozinho. Não mais será lembrado pela riqueza, mas pelo suicídio. De que adiantaria passar o resto da sua vida na cadeia?
É outono, onde tudo morre para um dia nascer de novo. A noite é nublada - carregada, ventos uivam ao entrar pela fresta na janela - típica para um tiro na boca. A vitrola, sua última paixão, toca Comfortably Numb, do Pink Floyd, que o leva até a segunda gaveta do lado direito do guarda roupa, onde ficam as meias. Pega uma caixa e a cada passo de volta à sala, toma um gole do uísque de ontem. Senta na poltrona, ao lado da vitrola, desliga o abajur que usava para ler a noite e redige uma carta de suicídio, não em papel, apenas em pensamento. Abre a caixa que trouxe e toma o calibre 38. Tira todas as balas do tambor e numa tentativa de se dar uma chance e desistir do ato, coloca só uma delas em sua sorte. Gira o tambor e o fecha. Engatilha. Pela segunda vez na vida pensa em um deus, a primeira foi quando teve de fugir para o lugar que está hoje, não pede nada, só pensa. Após a última dose de bebida, enxuga os olhos. Morrerá corroído por um sentimento de culpa e arrependimento, achando que as coisas poderiam ter caminhado de uma forma diferente. Coloca o cano da arma na boca e puxa o gatilho. A vida hollywoodiana que estava acostumado aqui não tem efeito. Não foi salvo no último instante. Caprichosamente, a única bala no revólver o mata no primeiro tiro.
Uma semana depois, um dos seus capangas, o encontra com o pescoço caído para o lado esquerdo, o sangue já seco na poltrona e o corpo putrefato, rodeado por mosquitos. A polícia toma a casa e a leva a leilão, o dinheiro arrecadado seria utilizado para um fundo de ação social peruano, porém quase sua totalidade é desviado para paraísos fiscais. Um dos banqueiros envolvidos nesse desvio é quem comprou a casa. Sua sétima casa, na garagem o sétimo carro...
Mais um que chega ao templo, mais um a ser imolado no altar de Dario, para demonstrar o poder que só ele tem, o de cunhar moedas e se quiser, homens."

13 de dezembro de 2011

Epílogo

Nasce sem saber da vida e morre sem saber da morte. Nasce sem saber da emoção e morre sem saber da razão. Nasce sem saber de onde veio e morre sem saber o porquê vai. Nasce sem saber de céu e morre sem saber de inferno. Nasce sem saber de iluminação e morre sem saber de espírito. Nasce sem saber de consciência e morre sem saber de alma. Nasce sem saber do dinheiro e morre sem saber da igualdade. Nasce sem saber de nada e morre sem saber de tudo. Nasce sem saber do ontem e morre sem saber do amanhã. Nasce sem saber quem é e morre sem saber o que é.
Nasce sem saber que a vida é um eterno nascer e morrer de pequenas coisas. Elas morrem fora e nascem dentro.
Morre sem saber que as grandes coisas nascem uma única vez, morrem uma única vez.
Para coisas grandes não há ressureição, reencarnação ou criogenia. Elas morrem dentro, não fora.
Qual o tamanho da sua ficha criminal? Qual o tamanho do seu cemitério? Qual o tamanho da sua culpa?

10 de dezembro de 2011

Eu sublimo, tu sublimas

Por dez anos a sublimei em natureza.
Estava sempre ao meu redor como vida.
Adormeci em sua terra, água, ar e fogo.
Até que choveu em minha varanda.
Molhou-me.
Lavou-me.
Ressuscitou-me.
Era o primeiro raio de sol da manhã e o último da tarde.
Era o fulgor da lua cheia e a maré de água viva.
Era o gracioso do orvalho e o rio por entre pedras.
Era o galho seco do outono e a flor da primavera.
Eis que então sublimou-me em suas gotas para vivê-la.
Não mais ao redor, mas sim envolto em seu lugar.
Do seu sol, sou halo.
Da sua lua, sou fase.
Do seu rio, sou foz.
Do seu outono, sou queda.
Da sua primavera, sou rebento.
Da sua saudade, sou falta.
Da sua vida, sou amor.
Envolve-me.
Sublima-me.
Viva-me!

9 de dezembro de 2011

Beiço do mundo

                                                                                                             Ruy Castro

A velha Hollywood nos ensinou que tudo nos EUA era maior, melhor, mais limpo, justo, ético, honesto, adulto, moderno, eficiente e perfeito do que nos outros países. Também pudera - os americanos eram o povo mais bonito, forte, corajoso, engenhoso e talentoso do mundo. Onde mais as pessoas saíam cantando e dançando pelas ruas com naturalidade e ao som de uma enorme orquestra invisível?
E quem cavalgava melhor e tinha os cavalos mais velozes? O cowboy americano. Não havia índio ou mexicano que o capturasse, exceto à traição, coisa que, aliás, eles viviam fazendo (e de que o cowboy americano era incapaz). O mesmo se aplicava ao soldado americano em relação aos alemães e japoneses - quem era o mais heroico, o mais desprendido, o mais inteligente? E a Marinha americana? Quem tinha porta-aviões mais imponentes? Quem usava camisas de manga curta mais brancas? E quem mais tinha milhares de marinheiros que sabiam sapatear?
Nos filmes, víamos maravilhas que faziam parte do dia a dia dos americanos e de ninguém mais: cerveja em lata, barbeadores elétricos, cortadores de grama, trevos rodoviários (filmados de avião), edifícios de 90 andares e naves que iam à Lua e voltavam. E quem seria mais poderoso que o governo dos EUA, capaz de movimentar estruturas gigantescas para plantar um exército inteiro em território inimigo a 15 mil km e resgatar um espião a minutos de ser descoberto?
Todas essas eram benesses do poder e da riqueza. De repente, fico sabendo que o dinheiro no caixa do Tesouro americano vai acabar na terça-feira e que a Casa Branca, com uma dívida de US$ 14,3 trilhões, ameaça dar o beiço no mundo.
Inacreditável. Como pode o governo americano quebrar? Se acontecer, quem vai pagar a conta da lavanderia que mantinha as camisas tão brancas?