25 de agosto de 2011

Ensaio sobre como é escrever (não escrever)

A sensação de escrever é como aprender a ler e ter novos olhos. Como tocar repique na fanfarra da escola. Como subir nas amoreiras, mangueiras e ameixeiras para comer fruto direto do pé, sem lavá-los. Como traçar as linhas do campo de futebol na rua do Jardim Alegre, com cal e água, esperando que demore alguns instantes para passar um carro, até que a mistura seque no asfalto. Como arrancar a "tampa" do dedão chutando o meio-fio e a bola ao mesmo tempo. Como ficar quinze minutos em algum canto no esconde-esconde, e na corrida até o pique o seu chinelo arrebentar. Como escolher o seu time. Como ter e colocar apelido. Como escapar a corrente da sua bicicleta, justo na descida de uma trilha em meio ao mato. Como inventar brincadeiras que geram discussões, já que suas regras não são bem claras: "saiu; eu já tinha batido; hoje não; vocês combinaram antes; 'primeirinho'; vai chutar forte então; foi na trave; passou por cima; nem pegou em mim". Como atrair o cachorro para o outro lado da casa da vizinha e alguém entrar rapidamente pegar a bola. Como apostar uma Coca-Cola com o time da rua de cima. Como sua mãe chamar você para o banho ou janta, logo quando a coisa estava boa. Como aprender a jogar dorminhoco, rouba-monte, pife, canastra e truco. Como ultrapassar o pseudolimite da meia-noite conversando em frente a casa do seu vizinho. Como tomar café da tarde a cada dia na casa de um amigo, todos saberem o nome da sua mãe e o gosto do seu café. Como participar dos grupos de jovens da sua igreja. Como começar a gostar de uma menina. Como beijar pela primeira vez a prima de um amigo. Como criar outros círculos de amizades, da rua, colégio, igreja, família. Como "matar" aula de biologia para jogar futebol. Como ter vergonha de apresentar trabalhos. Como viajar à exposições, feiras, pontos turísticos ou jogos. Como iniciar o processo de empatia. Como torcer para que a maioridade chegue rápido. Como fantasiar sobre o futuro. Como dar valor as coisas simples. Como os "comos" começam a sumir. Como ter e ativar sua máquina do tempo. Como esquecer de algum como. Como escrever, é assim.
Paro de escrever. Foi como, só foi. Agora é. Não é mais sua mãe, mas a vida quem chama. Não para o banho ou a janta, mas para a realidade sem "como", com "é". Talvez minha escrita seja o problema. Porém preciso de personagens como: D'artagnan, Dom Quixote, Gulliver, Dr. Lidenbrock, Pequeno Príncipe, Sherlock, Julieta, Capitu, Dona Flor, Diadorim, Odisseu ou Leopold Bloom, Godot, Poirot, Terra. Ou cenários: Sítio do Pica Pau Amarelo, biblioteca de Babel, campo de centeio, o sertão. É isso que alimenta meu vocabulário com muito como. A fantasia nossa de cada dia.
Não escrevo no mundo do é, apenas do como. Somente a realidade não inspira, preciso inventar. Escrevo quando os "comos" aparecem, uma tentativa de eternizar instantes com palavras. Quando somem ou não aparecem eu me afasto das palavras.
É como eternizar tudo isso. Inventando, escrevendo, lendo, lembrando, chorando, amando, rindo. Vivendo.
Como não conectar mais a primeira frase a última. Como não fazer mais sentido. Como não acabar a fantasia. Como aprender a terminar um parágrafo sem importância.

Acabou o como, paro de escrever.
Como agora.

Haikai II

Sala com fogo na lareira
lá fora chuva na calha
dentro chão de goteira.

Haikai I

No ônibus mãos erguidas
elas esperam seu ponto
quantas realidades parecidas.