30 de março de 2011

Janela dos sentidos


É madrugada.
A essa hora resta pouca coisa para os ouvidos. Em primeiro plano música instrumental, o cooler e o tec tec das teclas do notebook dão o tom. Ademais o eco dos velhos caminhões de lixo rugindo pela cidade adormecida. Buzinas esparsas na escuridão trazem consigo roncos de motores, sons altos e o barulho do pneu sobre o asfalto, como um avião rompendo a barreira do som, quando passam em cima de uma tampa de galeria pluvial solta, que gera dois estrondos quase seguidamente. Ambulâncias e suas sirenes estridentes se desfazendo ao longe com o efeito Doppler. O grave vem dos aviões rasgando o breu em meio a densas nuvens, contrastando o zumbido torturante do pernilongo que invariavelmente chega atazanando a tranquilidade. Um ruídoso jornal que varre o chão junto ao vento parece procurar alguma parede para se encostar enfim. O bater das asas do pássaro, em um uníssono com um grito de alto grau etílico, fecha a janela e o último movimento da silenciosa sinfonia, regida por bocejos incontroláveis.
A essa hora resta pouca coisa para os olhos. A televisão muda para evitar o sonoro “piii” do fechamento da programação, mostra faixas coloridas na horizontal, às vezes misturadas aos fantasmas e vultos provocados pela falha na recepção do sinal. O display do aparelho de som pisca insistentemente 0:00, sincronizado com o cursor do Word que teima em ficar no mesmo lugar, como que tentando irritar ou atrasar o passar do tempo. O reflexo do rosto no vidro da janela é distorcido pelo vento, que faz a persiana mexer-se a todo o momento, passando em frente à silhueta. Da janela outras poucas janelas continuam iluminadas com uma coloração alaranjada, parecida com as luzes dos postes da rua, que no horizonte confudem-se com o céu nublado, ora revelando, ora ocultando a lua crescente. Um céu que não favorece a escrita, já que nem as estrelas aparecem em uma tentativa de comparação com olhos da suposta amada. Lá embaixo só resta um cachorro em meio ao sono e o carro do vizinho em meio à sujeira. O vento ainda balança as copas das tipuanas, que fazem uma espécie de ballet nas calçadas e ruas, que servem como palco para as grandiosas árvores madrugueiras, suas folhas caem em movimentos suaves até encontrarem o chão. Cessa o vento, se fecha a janela, fim do primeiro ato.
A essa hora resta pouca coisa para o nariz. O cheiro ainda forte da loção pós barba remetendo a notas campestres, silvestres, que se misturam ao café, restando um perfume delicioso a cada vez que se aproxima a xícara de porcelana, do rosto. Teima em ficar no travesseiro um odor característico que sabe bem de quem é, e torce para que não saia dali tão cedo. Na primavera fica o cheiro quase imperceptível, mas que a essa hora é aguçado, o cheiro das flores da tipuana. Doce como do seu travesseiro, inconfundível como do seu café, denso como da sua loção e misterioso como da sua janela.
A essa hora resta pouca coisa para a pele. A lisura confortável do plástico do computador quase lembra outra pele, não a da cutícula que continua cutucando e tirando-a com os dentes. O pó no cotovelo denuncia a falta de limpeza no parapeito da janela, ao tirar a poeira percebe um pequeno ressecamento naquela parte do corpo. As pequenas brisas arrepiam o braço, esfrega as mãos e com elas atrita a região arrepiada, estala os dedos, coça a mordida do pernilongo e passa a mão no queixo, indagando a si mesmo alguma coisa que há horas paira naquela janela.
A essa hora resta pouca coisa para a língua. O creme dental de menta ainda está lá e mistura-se ao amargo do café em um gosto hermético, exótico, que chega a retomar a refrescância do fim da escovação, principalmente quando inspira o ar pela boca, esta que em instantes pedirá água. Água para tomar olhando pela janela, e elucidar o que seria aquilo antes que ela se feche.
A essa hora resta pouca coisa para os sentidos. Eles se tornam misantropos.
Há alguma coisa lá fora que interfere nos seus sentidos e deixa-os assim. Essa coisa brinca, irrita, empolga e mutila. Como é difícil sentir. Quando a janela se fecha acontece uma espécie de reunião dos sentidos em uma ágora para decidir o que importa, filosofar sobre aonde eles podem te levar, como podem chegar lá, tudo isso sem perguntar nada ao interessado. Só resta imaginar. Quando a janela se abre e está lá para sentir, se sente. Senão, não se sente. É simples.
Ouve mais do que vê. Vê mais do que cheira. Cheira mais do que saboreia. Saboreia mais do que pensa. Pensa mais do que quase nada.
Não se pensa muito, o sentir já foi definido antes da janela se abrir. O pouco que pensa transforma-se em palavra, essa sim com poder para barrar ou aprovar os sentidos. A palavra forma-se entre o fechar e o abrir da janela, descreve a discussão em ágora e como um sexto sentido, transcreve a sensação. 
Remoer o que pensa para apalavrear o abrir da janela, remoer para tentar digerir alguma falácia da palavra e sentir por inteiro. O sexto sentido todos têm, a janela alguns perdem.
Cuide bem da sua janela.

Poema concreto


Thiago de Mello         

O que tu tens e queres saber (porque te dói)
não tem nome. Só tem (mas vazio) o lugar
que abriu em tua vida a sua própria falta.

A dor que te dói pelo avesso,
perdida nos teus escuros,
É como alguém que come
não o pão, mas a fome.

Sofres de não saber
o que tens e falta
Num lugar que nem sabes,
Mas que é tua vida
Quem sabe é teu amor.
O que tu tens, não tens.

24 de março de 2011

Analogia embriagada

Perdeu. Perdeu depois de 12 assaltos disputados. Perdeu sem ir uma vez sequer a lona. Perdeu na contagem dos juízes por 2x1. Perdeu por um jab que abriu sua guarda e deixou que o direto entrasse, foi por isso que perdeu, por dois golpes. Perdeu da pior maneira possível, ou da melhor, não sei, mas que tristeza daquele homem. Ficou dias e dias pensando, "e aquela hora, como o cruzado não entrou?", "eu fiz o possível, mas poderia ter sido mais agressivo, ter tomado a frente da luta!". Estava convicto de que não foi o adversário que ganhou, mas ele que perdeu. O sentimento de culpa o corroía como ferrugem em aço velho.
Após algumas ferrugens, doses, esquinas, prostitutas, brigas e porres ele descobriu a verdade. Para ele a verdade se tornou simples, "eu perdi porque ataquei menos". Ele via isso nos vídeos dos grandes vencedores atacadores, Joe Louis, Muhammad Ali, Jorge Foreman, Joe Frazier, Rocky Marciano, este que em 49 subidas ao ringue nunca conheceu a derrota. Todos com ataques fulminantes, o que valia era o nocaute.
Em algum momento de embriaguez conversando com um velho garçom chegou a outra conclusão por analogia. "A vida é como uma luta de boxe, quase sempre ganha quem ataca mais, quem arrisca mais"...Quem arrisca aquele jab para abrir a defesa alheia, quem troca a passada para pegar o contrapé, quem deixa de planejar um pouco e usa mais o feeling.
Esse homem se tornou o terror dos campeonatos amadores do subúrbio de Nova Iorque, sua luta ficou impecável com a verdade. Agressivo, mas ortodóxico. Técnico, mas impulsivo. Aprendeu que deveria lutar como vivia e vice-versa. "De cara para o vento arriscando, porém com a guarda alta meu filho, sabendo a hora de baixar e atacar, você não sabe o que vem por aí", dizia ele nas suas filosofadas.
Se funciona? Não dá para saber até você arriscar!
Saia da defensiva. Ataque. Um jab, abriu a guarda, um direto, outro, um cruzado de esquerda, foi a lona, abriu a contagem. Um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez. Nocaute, o vencedor!

2 de março de 2011

Receita do não-sozinho


Tudo parece ser simples.
Não quer se decepcionar? Não conheça ninguém. Uma boa pedida é fazer uma visita a algum tipo de monge ocidental eremita, ou mais sociáveis do tipo tibetanos, mesmo assim é possível que você se decepcione com algum dos irmãos por alguma careca mais bonita ou a habilidade do canto gregoriano de outro.
Não quer se estressar? Se retire da vida profissional e de tudo que te causa raiva, ódio ou repúdio. O nível de estresse no Tibete chega a míseros 2%, esses 2% só por esperar um temido ataque de alguma força chinesa, como nos velhos tempos da dinastia Qing.
Não quer seus pais aconselhando/pentelhando sua vida adolescente ou na maioridade? Cristo, disse a certa feita: ”Renuncia-te a ti mesmo, toma tua cruz e segue-me”. Assim fazem ao extremo os cartuxos, filhos de São Bruno. Em seus mosteiros regados a silêncio, separados do mundo como conhecemos, onde saem uma vez por semana para um passeio sem ver ninguém, onde só resta a inexistência de rádio e tv, a impossibilidade de visitas (inclusive dos pais), um completo isolamento para uma completa contemplação até a morte. No Tibete algum Buda ou um Dalai Lama deve ter falado coisa parecida. Uma solução a sua rebeldia compreensiva.
Não quer trocar de amigos com o tempo? Indo a montanha você conhecerá os amigos que irão morrer com você, grande lealdade.
Não quer uma paixão arrebatadora que te cause traumas? Lá com os eremitas o que te resta é o amor ao próximo. Seu coração é todo doado ao irmão e a contemplação divina, sendo ocupado como um todo, paixões são vagas e banais nesses lugares.
Não quer ficar sozinho? Então volte todos os parágrafos e responda com um “quero” a todas perguntas e assuma suas consequências.
Decepcione-se com as pessoas, saiba que você também desapontou algumas delas. A perfeição é um caminho longo e tortuoso que pouquíssimos alcançam, sem sequer saber a real definição de perfeição.
Entre de cabeça no estresse, afinal ele pode ser seu ganha pão. Há prazer após o término do desafio, ao fim extravaze do jeito que achar melhor, inclusive podendo desapontar alguém.
Seus pais um dia você irá entender, portanto aproveite-os antes que compreenda. Chore, brigue fuja, ria, discuta, ame, do jeito que amar, com ou sem palavras, com ou sem atitudes. Você demonstra nem que os decepcione ou sua extravazada seja grande demais para a compreensão deles.
Aproveite seus amigos enquanto estiverem por perto e de muito valor àqueles que te acompanham há doze, quinze anos. Aos demais que vem e vão aproveite enquanto estiverem por aí. A máxima é diversão, parceria, sorria com seus amigos, sabemos que vai se desapontar com alguns deles, outros farão parte da sua extravazada e seus pais vão te chatear devido a algumas amizades.
Enfim, se encha de feridas com a navalha do amor. Se entregue, sofra e faça sofrer, traumatize-se, curta e deixe alguém cicatrizar seu ferimento. Tudo quase nessa ordem que parece ser lógica, seus amores te decepcionarão, serão motivo para extravazar, seus pais reprovarão  e depois aprovarão, amizades se renovarão, amores e paixões virão. Tenha histórias, estórias, músicas e causos.
Não é um texto do tipo que vira música do filtro solar, se encaixa mais como uma receita na Ana Maria Braga ou com a Palmirinha, a receita do não-sozinho. Adicione um quero para cada pergunta e acrescente sal à gosto.
Temos planos de meio-sozinho, consulte seu agente de vida.
Ainda assim mosteiros, eremitas, abadias, clausuras e montanhas parecem uma boa saída.

O Que Eu Adoro em Ti


O que eu adoro em ti
Não é sua beleza
A beleza é em nós que existe
A beleza é um conceito
E a beleza é triste
Não é triste em si
Mas pelo que há nela
De fragilidade e incerteza
O que eu adoro em ti
Não é a tua inteligência
Mas é o espírito sutil
Tão ágil e tão luminoso
Ave solta no céu matinal da montanha
Nem é tua ciência
Do coração dos homens e das coisas
O que eu adoro em ti
Não é a tua graça musical
Sucessiva e renovada como teu próprio pensamento
Graça que perturba e que satisfaz
O que eu adoro em tua natureza
Não é o profundo instinto maternal
Em teu flanco aberto como uma ferida
Nem a tua pureza. Nem a tua impureza
O que adoro em ti lastima-me e consola-me
O que eu adoro em ti é a vida!

Manuel Bandeira