É madrugada.
A essa hora resta pouca coisa para os ouvidos. Em primeiro plano música instrumental, o cooler e o tec tec das teclas do notebook dão o tom. Ademais o eco dos velhos caminhões de lixo rugindo pela cidade adormecida. Buzinas esparsas na escuridão trazem consigo roncos de motores, sons altos e o barulho do pneu sobre o asfalto, como um avião rompendo a barreira do som, quando passam em cima de uma tampa de galeria pluvial solta, que gera dois estrondos quase seguidamente. Ambulâncias e suas sirenes estridentes se desfazendo ao longe com o efeito Doppler. O grave vem dos aviões rasgando o breu em meio a densas nuvens, contrastando o zumbido torturante do pernilongo que invariavelmente chega atazanando a tranquilidade. Um ruídoso jornal que varre o chão junto ao vento parece procurar alguma parede para se encostar enfim. O bater das asas do pássaro, em um uníssono com um grito de alto grau etílico, fecha a janela e o último movimento da silenciosa sinfonia, regida por bocejos incontroláveis.
A essa hora resta pouca coisa para os olhos. A televisão muda para evitar o sonoro “piii” do fechamento da programação, mostra faixas coloridas na horizontal, às vezes misturadas aos fantasmas e vultos provocados pela falha na recepção do sinal. O display do aparelho de som pisca insistentemente 0:00, sincronizado com o cursor do Word que teima em ficar no mesmo lugar, como que tentando irritar ou atrasar o passar do tempo. O reflexo do rosto no vidro da janela é distorcido pelo vento, que faz a persiana mexer-se a todo o momento, passando em frente à silhueta. Da janela outras poucas janelas continuam iluminadas com uma coloração alaranjada, parecida com as luzes dos postes da rua, que no horizonte confudem-se com o céu nublado, ora revelando, ora ocultando a lua crescente. Um céu que não favorece a escrita, já que nem as estrelas aparecem em uma tentativa de comparação com olhos da suposta amada. Lá embaixo só resta um cachorro em meio ao sono e o carro do vizinho em meio à sujeira. O vento ainda balança as copas das tipuanas, que fazem uma espécie de ballet nas calçadas e ruas, que servem como palco para as grandiosas árvores madrugueiras, suas folhas caem em movimentos suaves até encontrarem o chão. Cessa o vento, se fecha a janela, fim do primeiro ato.
A essa hora resta pouca coisa para o nariz. O cheiro ainda forte da loção pós barba remetendo a notas campestres, silvestres, que se misturam ao café, restando um perfume delicioso a cada vez que se aproxima a xícara de porcelana, do rosto. Teima em ficar no travesseiro um odor característico que sabe bem de quem é, e torce para que não saia dali tão cedo. Na primavera fica o cheiro quase imperceptível, mas que a essa hora é aguçado, o cheiro das flores da tipuana. Doce como do seu travesseiro, inconfundível como do seu café, denso como da sua loção e misterioso como da sua janela.
A essa hora resta pouca coisa para a pele. A lisura confortável do plástico do computador quase lembra outra pele, não a da cutícula que continua cutucando e tirando-a com os dentes. O pó no cotovelo denuncia a falta de limpeza no parapeito da janela, ao tirar a poeira percebe um pequeno ressecamento naquela parte do corpo. As pequenas brisas arrepiam o braço, esfrega as mãos e com elas atrita a região arrepiada, estala os dedos, coça a mordida do pernilongo e passa a mão no queixo, indagando a si mesmo alguma coisa que há horas paira naquela janela.
A essa hora resta pouca coisa para a língua. O creme dental de menta ainda está lá e mistura-se ao amargo do café em um gosto hermético, exótico, que chega a retomar a refrescância do fim da escovação, principalmente quando inspira o ar pela boca, esta que em instantes pedirá água. Água para tomar olhando pela janela, e elucidar o que seria aquilo antes que ela se feche.
A essa hora resta pouca coisa para os ouvidos. Em primeiro plano música instrumental, o cooler e o tec tec das teclas do notebook dão o tom. Ademais o eco dos velhos caminhões de lixo rugindo pela cidade adormecida. Buzinas esparsas na escuridão trazem consigo roncos de motores, sons altos e o barulho do pneu sobre o asfalto, como um avião rompendo a barreira do som, quando passam em cima de uma tampa de galeria pluvial solta, que gera dois estrondos quase seguidamente. Ambulâncias e suas sirenes estridentes se desfazendo ao longe com o efeito Doppler. O grave vem dos aviões rasgando o breu em meio a densas nuvens, contrastando o zumbido torturante do pernilongo que invariavelmente chega atazanando a tranquilidade. Um ruídoso jornal que varre o chão junto ao vento parece procurar alguma parede para se encostar enfim. O bater das asas do pássaro, em um uníssono com um grito de alto grau etílico, fecha a janela e o último movimento da silenciosa sinfonia, regida por bocejos incontroláveis.
A essa hora resta pouca coisa para os olhos. A televisão muda para evitar o sonoro “piii” do fechamento da programação, mostra faixas coloridas na horizontal, às vezes misturadas aos fantasmas e vultos provocados pela falha na recepção do sinal. O display do aparelho de som pisca insistentemente 0:00, sincronizado com o cursor do Word que teima em ficar no mesmo lugar, como que tentando irritar ou atrasar o passar do tempo. O reflexo do rosto no vidro da janela é distorcido pelo vento, que faz a persiana mexer-se a todo o momento, passando em frente à silhueta. Da janela outras poucas janelas continuam iluminadas com uma coloração alaranjada, parecida com as luzes dos postes da rua, que no horizonte confudem-se com o céu nublado, ora revelando, ora ocultando a lua crescente. Um céu que não favorece a escrita, já que nem as estrelas aparecem em uma tentativa de comparação com olhos da suposta amada. Lá embaixo só resta um cachorro em meio ao sono e o carro do vizinho em meio à sujeira. O vento ainda balança as copas das tipuanas, que fazem uma espécie de ballet nas calçadas e ruas, que servem como palco para as grandiosas árvores madrugueiras, suas folhas caem em movimentos suaves até encontrarem o chão. Cessa o vento, se fecha a janela, fim do primeiro ato.
A essa hora resta pouca coisa para o nariz. O cheiro ainda forte da loção pós barba remetendo a notas campestres, silvestres, que se misturam ao café, restando um perfume delicioso a cada vez que se aproxima a xícara de porcelana, do rosto. Teima em ficar no travesseiro um odor característico que sabe bem de quem é, e torce para que não saia dali tão cedo. Na primavera fica o cheiro quase imperceptível, mas que a essa hora é aguçado, o cheiro das flores da tipuana. Doce como do seu travesseiro, inconfundível como do seu café, denso como da sua loção e misterioso como da sua janela.
A essa hora resta pouca coisa para a pele. A lisura confortável do plástico do computador quase lembra outra pele, não a da cutícula que continua cutucando e tirando-a com os dentes. O pó no cotovelo denuncia a falta de limpeza no parapeito da janela, ao tirar a poeira percebe um pequeno ressecamento naquela parte do corpo. As pequenas brisas arrepiam o braço, esfrega as mãos e com elas atrita a região arrepiada, estala os dedos, coça a mordida do pernilongo e passa a mão no queixo, indagando a si mesmo alguma coisa que há horas paira naquela janela.
A essa hora resta pouca coisa para a língua. O creme dental de menta ainda está lá e mistura-se ao amargo do café em um gosto hermético, exótico, que chega a retomar a refrescância do fim da escovação, principalmente quando inspira o ar pela boca, esta que em instantes pedirá água. Água para tomar olhando pela janela, e elucidar o que seria aquilo antes que ela se feche.
A essa hora resta pouca coisa para os sentidos. Eles se tornam misantropos.
Há alguma coisa lá fora que interfere nos seus sentidos e deixa-os assim. Essa coisa brinca, irrita, empolga e mutila. Como é difícil sentir. Quando a janela se fecha acontece uma espécie de reunião dos sentidos em uma ágora para decidir o que importa, filosofar sobre aonde eles podem te levar, como podem chegar lá, tudo isso sem perguntar nada ao interessado. Só resta imaginar. Quando a janela se abre e está lá para sentir, se sente. Senão, não se sente. É simples.
Ouve mais do que vê. Vê mais do que cheira. Cheira mais do que saboreia. Saboreia mais do que pensa. Pensa mais do que quase nada.
Não se pensa muito, o sentir já foi definido antes da janela se abrir. O pouco que pensa transforma-se em palavra, essa sim com poder para barrar ou aprovar os sentidos. A palavra forma-se entre o fechar e o abrir da janela, descreve a discussão em ágora e como um sexto sentido, transcreve a sensação.
Há alguma coisa lá fora que interfere nos seus sentidos e deixa-os assim. Essa coisa brinca, irrita, empolga e mutila. Como é difícil sentir. Quando a janela se fecha acontece uma espécie de reunião dos sentidos em uma ágora para decidir o que importa, filosofar sobre aonde eles podem te levar, como podem chegar lá, tudo isso sem perguntar nada ao interessado. Só resta imaginar. Quando a janela se abre e está lá para sentir, se sente. Senão, não se sente. É simples.
Ouve mais do que vê. Vê mais do que cheira. Cheira mais do que saboreia. Saboreia mais do que pensa. Pensa mais do que quase nada.
Não se pensa muito, o sentir já foi definido antes da janela se abrir. O pouco que pensa transforma-se em palavra, essa sim com poder para barrar ou aprovar os sentidos. A palavra forma-se entre o fechar e o abrir da janela, descreve a discussão em ágora e como um sexto sentido, transcreve a sensação.
Remoer o que pensa para apalavrear o abrir da janela, remoer para tentar digerir alguma falácia da palavra e sentir por inteiro. O sexto sentido todos têm, a janela alguns perdem.
Cuide bem da sua janela.
Cuide bem da sua janela.