14 de dezembro de 2012

Dilúvio

Invadiu a casa. Antes disso frequentou a varanda por anos, em silêncio. Até que um dia voltou a chover depois de tanto tempo, chuva outrora recorrente, hoje recorrente. Inundou a varanda, então abriu a janela e entrou. Do tumulto, silêncio. Invadiu a casa. Isso há 500 dias. A casa, em silêncio. Fiquei tonto no dia da invasão, rodou comigo por alguns minutos. Aos poucos o silêncio tomou forma e já dizia devidamente contextualizado. A primeira providência foi encontrar mais uma cadeira para a cozinha. Uma a mais, um a mais, foi sobrando pouco espaço para o tumulto, que não acreditava no que estava acontecendo. O silêncio argumentava que não precisava dizer, era inevitável. Inefável. A cozinha do café sob medida. A sala do sofá apertado. O banheiro dos xampus tampados. O quarto dos travesseiros desconjuntados. O agora – desde sempre – nosso cômodo do amor guardado. Tranquei nosso oásis. Não há chaveiro, bombeiro, bandido, que abra esse cômodo. Sem comodismo, é cômodo estar no cômodo. É autossuficiente. Tudo foi plantado corretamente. Esmerado. Hoje germina amor, colhe felicidade. Isolados. O tempo escorre rapidamente pela janela levando luas e sóis, estações e anos, enquanto a chuva ainda lava a varanda. Como Ziusudra sobreviveu e depois mostrou a Gilgamesh sua imortalidade sobre as águas. Aprendeu que isso não é possível para todos.
Num dilúvio de 500 dias e 500 noites.

17 de junho de 2012

O poder da sua mente


De alguma forma tirou proveito da leitura clichê: "Quando você quer alguma coisa, todo o Universo conspira para que você realize seu desejo."
Roberto, desejou com toda sua força - deixou claro seu objetivo - e o Universo conspirou para ele. Seu pai, Jonas, que estava na UTI, morreu. Enfim colocaria a mão no seguro do falecido. Dinheiro que entupiu e paralisou seu cérebro, como a gordura fez com as coronárias de seu pai.
Depois o arrependimento. O dito serviço universal não tem garantia nem posto de troca de desejo.

Em meio a um zilhão de galáxias e estrelas, ele, um pequeno pedaço de estrume, achava-se realmente importante, um egocentrismo irremediável, tipicamente humano, hipócrita.
Com a culpa em suas costas começou a se colocar mais no seu próprio lugar, o de um pequeno pedaço de estrume. Com o tempo, a experiência, a sabedoria, a racionalidade, compreendeu em que instância o Universo influenciava a sua vida: nenhuma. O maior problema do clichê é sua autoridade. É como uma ditadura da verdade, "como você pode não acreditar nisso". Todos leem, todos acreditam, todos militam por isso sem saber o porquê ou onde isso vai dar. A unanimidade é a morte em sua principal fantasia. Viver não é fácil como nos clichês; é duro, dói e não são poucas vezes (essa parte pulará pois é clichê). 
Fim da alienação. Seu pai morreu porque morreu, simples assim, se o seu desejo para o Universo fosse de que ele não morresse, ainda assim ele morreria. Era um velho na UTI, morreu.
Já chegando ao fim de algo tirou proveito da nova leitura: " Eu atravesso as coisas - e no meio da travessia não vejo! - só estava era entretido na ideia dos lugares de saída e de chegada. Assaz o senhor sabe: a gente quer passar um rio a nado, e passa; mas vai dar na outra banda é num ponto muito mais embaixo, bem diverso do em que primeiro se pensou. Viver nem não é muito perigoso?"
Nem tudo que faz sentido tem sentido, como o contrário. Tudo pode o poder da sua mente (?), inclusive ser engolido por uma palavra, um pequeno pedaço de estrume.
Acaso pode ser que não faça sentido; hoje.

1 de fevereiro de 2012

Arco-íris

Teu riso irisado entrega-me um pote de amor a cada chuva. A cada dia da semana sorri-me de uma cor porque te falo branco. Segunda-feira sorri-me vermelho. Terça-feira sorri-me laranja. Quarta-feira sorri-me amarelo. Quinta-feira sorri-me verde. Sexta-feira sorri-me azul. Sábado sorri-me anil. Domingo sorri-me violeta. O que ninguém sabe - e nunca saberá - é em que dia da semana vejo todo o espectro. Eu vejo o arco-íris, eu vejo. É como ver o fruto e imaginar a árvore. É como ver o peixe e imaginar o rio. É como ver o filho e imaginar a mãe. É como ver o vermelho, laranja, amarelo, verde, azul, anil e violeta, e imaginar-te, arco-íris.

29 de janeiro de 2012

Lenda

Volta ao nosso tempo mais remoto.
Olha-me, amor, olha-me com tuas pequenas pupilas
que ardem em silêncio. Quando olhares, como Medusa,
não transforma-me em pedra, mas consubstancia-me
com a terra. Terra porosa, vermelha e rica em vida.
Olha-te, amor, olha-te pelo meu olho de grandes pupilas
que desenham-te ao pestanejar. Faz o mesmo, porém
consubstancia-te com água. Água cristalina, límpida
e detentora de vida.
Então em nosso leito corre lenta sobre mim.
Alimenta-me em vida até ser toda absorvida,
para não evaporar ou contaminar-se no percurso.
Nosso aquífero.

Cria anfíbios que vivem no canal, e quando secar,
mudam para formas na terra,
antigo fundo do rio, ainda umedecido.
Escreve sobre criaturas medievais que existiram, 
com chifres e rabos, gigantes e tétricos, que
atormentavam quem por lá navegava e fazia aquele
rio deserto e manso.
Enquanto sabem que estamos embaixo, absortos
numa única matéria, coloca isso num bestiário para
alimentar a esperança de que histórias e amores como esse
ainda existem. Por mais escondidos que estejam.
Protegidos em nossa profundidade.