19 de julho de 2014

A anistia dos fugitivos

Cintilações ofuscam a saída de emergência pela porta ao final da escada, assim como as sirenes encobrem gritos de socorro. Tal como ao anoitecer, a revoada dos pássaros vem dissipando a capacidade humana de prever movimentos circulares, presentes nas baterias antiaéreas que agora são carregadas. Cruzam o céu atestados de óbitos anônimos - assinados por um cego que pode escrever, um mudo que pode ordenar, um surdo que pode consentir - de quem ninguém conhece.
O combustível dos geradores do hospital acabou. O sistema reserva falhou. Sistematicamente os equipamentos cessaram. A cada minuto um grupo aparece correndo para um lado, outro na direção contrária, sucessivamente. Se o impacto não acontecer aqui, acontecerá ali.
O prelúdio é composto por um carrilhão natural ao longo dos campanários da cidade, que retinem uníssonos uma marcha fúnebre em sinos centenários. Todos morrerão com honras militares, sob uma salva de tiros. O diálogo dos projéteis se encarregará do rito para encomendar as almas. Cada idiossincrasia é quebrada no desespero da miséria humana frente ao fim. Laissez faire, laissez aller, laissez passer.
Lembra-se do quanto tinha a necessidade de que o ouvissem, de que o aprovassem, ao menos o observassem? É agora que precisa disso, porém ninguém possui tempo para olhar para o lado. Quem triunfará? Então o último suspiro. O véu se rasgou. Ouve-se um sussurro: “és fraco, és fraco, és fraco. Cruzes. Cruzes”.
Todo o anacronismo é aceito em meio ao caos.
Houve um tempo em que paladinos se encarregariam da batalha, apenas eles. Ao que parece, se as histórias ainda fossem contadas pelos homens e suas memórias, lendas sobre o nosso comandante assustariam os selvagens invasores. Este homem, diziam meus avôs, ia para a mata onde estava o acampamento inimigo, sempre em noites enevoadas, encontrar algum sentinela. Levava uma pedra e uma faca. Com a pedra chamava a atenção do futuro morto atirando-a contra alguma árvore. Com a faca dilacerava seu pescoço. Por isso ficou conhecido como sorrateiro. Até morrer - vítima de vidas sintéticas, botões e cliques - por uma carta envenenada com ricina.
Após as primeiras explosões ficou atônito. Surdo e cego temporariamente. Imagens desfocadas do passado foram passando por si. Lugares, pessoas, sabores e cheiros que não mais fazem parte da sua vida. Instantes de paz sem ver e sem ouvir, agachado junto à fonte da praça central que foi até onde conseguiu correr no caminho para a casa. Parecia haver acabado, até a chuva lavar seus olhos. Voltou a ver a barbárie exposta nas ruas e desejou estar cego novamente.
Na corrida carregava chaves, porém as portas não alcançava. Voara como Ícaro, e tal como ele tentando deixar Creta, o calor, não do sol, mas das bombas, desmancharam suas asas. Foi-lhe amputada a possibilidade de fugir, pois se fugisse riria. Riria olhando para trás vendo si próprio escapar da desgraça. Fará agora companhia a mulher de Ló, em uma cidade destruída, por nós mesmos, por eles mesmos. Viverá impossibilitado de fugir como Ló. Entenda, mesmo assim viverá fugindo sem covardia. Fugindo. Fugindo como a vida foge da morte.

Agora salvo, saí da toca. Da fonte já não jorra água. Do carrinho de doces já não saem guloseimas. Da árvore já não se ouve o trinado dos pássaros. As mesas de xadrez quebradas da praça agora deram um novo perfil para as calçadas, que até poderiam ser um estúdio de arte contemporânea. A poeira ainda alta me faz lembrar o caminho para o sítio na estrada de terra batida, cercada por um milharal interminável num labirinto linear. O rangido da placa metálica da barbearia do outro lado da praça, que balança continuamente com o vento nesse agora silêncio colossal, embala-me no mesmo som de uma rede de algodão fixada na garagem de casa, fazendo o papel do pêndulo de um relógio marcando o tempo, que sem o embalo do meu corpo, porque adormeci, parece passar cada vez mais devagar. Até parar. Até o tempo parar.
“Procurarás em vão morder-lhe o calcanhar”. Procurou em vão. Acordei ao final da tarde quando o beiral não mais conseguia impedir que os raios impiedosos do sol baixo me queimassem os olhos. O céu sangrava. Fiquei observando até a escuridão da noite estancar o vermelho. A serpente também fugiu.
Seríamos nós Jacó ou Ismael? Menelau ou Páris? Milcíades ou Xerxes? Alexandre ou Dario? Balduíno ou Saladino? Joana D’Arc ou Guillermo de la Pole? Wellington ou Napoleão? (...)
Seríamos nós Vida ou Morte?
Saberá quando voltar a crescer capim ao redor dos balanços das crianças, quando perder a hora para o trabalho, quando cair depois de uma bebedeira, quando se cortar na cozinha. Há sangue correndo.
A morte tocou-me, mas não me mordeu.
Já não somos apenas bípedes, Schopenhauer. Se desiludiu-se não viverá recluso, voará fugindo e a cera aguentará até encontrar nova terra, ó homens do mar, que não riem na partida, apenas na chegada.
Não se pode vencer o invencível. Se não dói, esta é a anistia, então deleita a ferida do opróbrio.