Cintilações ofuscam a
saída de emergência pela porta ao final da escada, assim como as sirenes
encobrem gritos de socorro. Tal como ao anoitecer, a revoada dos pássaros vem
dissipando a capacidade humana de prever movimentos circulares, presentes nas
baterias antiaéreas que agora são carregadas. Cruzam o céu atestados de óbitos
anônimos - assinados por um cego que pode escrever, um mudo que pode ordenar,
um surdo que pode consentir - de quem ninguém conhece.
O combustível dos
geradores do hospital acabou. O sistema reserva falhou. Sistematicamente os
equipamentos cessaram. A cada minuto um grupo aparece correndo para um lado, outro
na direção contrária, sucessivamente. Se o impacto não acontecer aqui,
acontecerá ali.
O prelúdio é composto por
um carrilhão natural ao longo dos campanários da cidade, que retinem uníssonos
uma marcha fúnebre em sinos centenários. Todos morrerão com honras militares,
sob uma salva de tiros. O diálogo dos projéteis se encarregará do rito para
encomendar as almas. Cada idiossincrasia é quebrada no desespero da miséria
humana frente ao fim. Laissez
faire, laissez aller, laissez passer.
Lembra-se do quanto tinha
a necessidade de que o ouvissem, de que o aprovassem, ao menos o observassem? É
agora que precisa disso, porém ninguém possui tempo para olhar para o lado.
Quem triunfará? Então o último suspiro. O véu se rasgou. Ouve-se um sussurro:
“és fraco, és fraco, és fraco. Cruzes. Cruzes”.
Todo o anacronismo é
aceito em meio ao caos.
Houve um tempo em que
paladinos se encarregariam da batalha, apenas eles. Ao que parece, se as
histórias ainda fossem contadas pelos homens e suas memórias, lendas sobre o
nosso comandante assustariam os selvagens invasores. Este homem, diziam meus
avôs, ia para a mata onde estava o acampamento inimigo, sempre em noites
enevoadas, encontrar algum sentinela. Levava uma pedra e uma faca. Com a pedra
chamava a atenção do futuro morto atirando-a contra alguma árvore. Com a faca
dilacerava seu pescoço. Por isso ficou conhecido como sorrateiro. Até morrer - vítima
de vidas sintéticas, botões e cliques - por uma carta envenenada com ricina.
Após as primeiras
explosões ficou atônito. Surdo e cego temporariamente. Imagens desfocadas do
passado foram passando por si. Lugares, pessoas, sabores e cheiros que não mais
fazem parte da sua vida. Instantes de paz sem ver e sem ouvir, agachado junto à
fonte da praça central que foi até onde conseguiu correr no caminho para a casa.
Parecia haver acabado, até a chuva lavar seus olhos. Voltou a ver a barbárie
exposta nas ruas e desejou estar cego novamente.
Na corrida carregava
chaves, porém as portas não alcançava. Voara como Ícaro, e tal como ele
tentando deixar Creta, o calor, não do sol, mas das bombas, desmancharam suas
asas. Foi-lhe amputada a possibilidade de fugir, pois se fugisse riria. Riria
olhando para trás vendo si próprio escapar da desgraça. Fará agora companhia a
mulher de Ló, em uma cidade destruída, por nós mesmos, por eles mesmos. Viverá
impossibilitado de fugir como Ló. Entenda, mesmo assim viverá fugindo sem covardia. Fugindo.
Fugindo como a vida foge da morte.
Agora salvo, saí da toca. Da
fonte já não jorra água. Do carrinho de doces já não saem guloseimas. Da árvore
já não se ouve o trinado dos pássaros. As mesas de xadrez quebradas da praça agora
deram um novo perfil para as calçadas, que até poderiam ser um estúdio de arte
contemporânea. A poeira ainda alta me faz lembrar o caminho para o sítio na
estrada de terra batida, cercada por um milharal interminável num labirinto
linear. O rangido da placa metálica da barbearia do outro lado da praça, que
balança continuamente com o vento nesse agora silêncio colossal, embala-me no
mesmo som de uma rede de algodão fixada na garagem de casa, fazendo o papel do
pêndulo de um relógio marcando o tempo, que sem o embalo do meu corpo, porque adormeci,
parece passar cada vez mais devagar. Até parar. Até o tempo parar.
“Procurarás em vão
morder-lhe o calcanhar”. Procurou em vão. Acordei ao final da tarde quando o
beiral não mais conseguia impedir que os raios impiedosos do sol baixo me queimassem os olhos. O céu sangrava. Fiquei observando até a escuridão da noite estancar o
vermelho. A serpente também fugiu.
Seríamos nós Jacó ou
Ismael? Menelau ou Páris? Milcíades ou Xerxes? Alexandre ou Dario? Balduíno ou
Saladino? Joana D’Arc ou Guillermo de la Pole? Wellington ou Napoleão? (...)
Seríamos nós Vida ou
Morte?
Saberá quando voltar a crescer
capim ao redor dos balanços das crianças, quando perder a hora para o trabalho, quando cair depois de uma
bebedeira, quando se cortar na cozinha. Há sangue correndo.
A morte tocou-me, mas não me
mordeu.
Já não somos apenas
bípedes, Schopenhauer. Se desiludiu-se não viverá recluso, voará fugindo e a
cera aguentará até encontrar nova terra, ó homens do mar, que não riem na partida, apenas na chegada.
Não se pode vencer o
invencível. Se não dói, esta é a anistia, então deleita a ferida do opróbrio.