23 de setembro de 2011

O narrador de Schrödinger

Era um hotel de beira de estrada, desses que você sempre vê em filme americano. Madrugada a dentro eu lia Borges, Ficções. Sempre lia seus contos, deitado na cama, até o sono chegar.
Ouvi um murmúrio vindo lá de fora, do grande pátio na frente dos quartos onde ficavam os carros. Não decifrei de imediato o que acontecia, mas a discussão foi ficando mais alta e mais próxima dos quartos. Saí da cama e desavisado fui à janela. Com os dedos abri uma fresta na persiana. 
Era um assalto, três homens encapuzados com pistolas tinham passado pela portaria. De relance vi também o porteiro correndo com uma calibre 12 na mão. Não tive de me jogar ao chão, o tiro do assaltante fez isso por mim, mas ele não mirou em mim, ele errou o porteiro, desgraçado! Não tenho força para gritar ou me arrastar, ali, estirado no chão eu fico. Logo agora! Não tive tempo de terminar de ler o Funes. Uma mão fica no ferimento para estancar um pouco o sangramento e a outra em vão tenta puxar o telefone de cima da pequena mesa em frente a janela, agora sem vidro.
Quem diria, estou morrendo com uma bala perdida em meu peito. Realmente aquela história de passar um filme na sua cabeça é verdade. Revi minha vida em pouco mais de cinco segundos, agora mesmo. Dariam boas crônicas. 
O carpete bege vai se tingindo de vermelho. A cadeira da mesa cai com meu debatimento no chão, junto vem o telefone, que cai na minha cabeça. Nunca achei que uma telefonada na cabeça não fosse doer, essa nem senti, aliás não sinto mais nada. Não tenho tempo de perguntar: Por que estou morrendo? Querem me calar? Então isso é morrer. 
Se eu estou vendo alguma luz me buscar, se estou em um túnel? Não, não, ainda estou agonizando no quarto do hotel, a única luz que eu vejo é a mesma de sempre que fica acesa toda noite, a do abajur ao lado da cama.
Mas se eu morri quem está contando essa história, será que há mais alguém nesse quarto, debaixo da cama, dentro do armário, sobre o forro do teto? 
Ei você que está aí, o que vale mais, minha vida ou uma boa história? Não duvide que você tenha o mesmo fim, e não reclame. Ah entendi, você é daqueles que classificam as pessoas em prioridades e opções, os que te fazem bem e os restos. Entre seu individualismo perverso que chama de amor e a necessidade alheia. Pelo menos não verei mais as misérias de seres como você. Eu sei que está me ouvindo.
Eu que achava que nesse momento todas as questões se responderiam.
Malditos narradores, contam a história como lhe convém. Agora não sei se morri ou não, a sensação exata do gato de Schrödinger, eu criando um paradoxo, o princípio da incerteza. Vivo, morto ou morto-vivo? Só o fato de observar já afeta o observado, o entrelaçamento da história, função-psi... teria que esperar um narrador me contar. Esse infeliz ainda vai dizer que eu não lutei pela vida, mas desisto de me debater para chamar a atenção e alguma alma voluntariosa me salvar para ter uma história decente. Sem narrador a história fica sem personagem, portanto eu acho que não aparecerá nenhum salvador agora. Poderia ser a última das minhas narrativas, quem sabe uma epopeia.
Essa tal de morte não serve para nada mesmo.